Por: Filipa Cardoso

Quando chegamos temos a sensação de que viajamos no tempo, não tanto pelos carros e edifícios antigos, mas sobretudo pela ausência de elementos básicos que temos como dados adquiridos no mundo “capitalista”: wi-fi em todo o lado, lojas de marca, supermercados, centros comerciais, padarias em cada esquina. Nada disso existe lá. Quando aterramos em Havana, é necessário deitar fora o chip “ocidental” e não colocar nenhum, para assim ser mas fácil abraçarmos um novo mundo.

Havana é uma cidade puramente feminina, dançante, ruidosa, carregada de odores fortes, que confesso, nem sempre são agradáveis: há muito lixo nas ruas e problemas de saneamento. A capital cubana tem aquela decadência de cidade latina que nos provoca estranheza, mas seduz intensamente.

Havana
Havana créditos: Filipa Cardoso

Desenhada por ruas e avenidas largas, é percorrida por casas coloniais coloridas dos séculos XVI e XVII, praças enormes, pontuadas por jardins tropicais onde apetece ficar a ler e gozar um pouco das sombrinhas.

A propaganda comunista está por toda a parte e vamos tropeçando, rua sim rua não, com os rostos de Che ou do Fidel, uma estátua em homenagem de Jose Martí, o grande escritor e libertador cubano, um museu militar e outros monumentos de cariz nacionalista. Como seria de esperar o mundo comunista está muito presente, mas interceptado pelo mundo ocidental. Exemplo disso são os estudantes adolescentes, vestidos com o uniforme cor caqui do partido, mas calçando umas sapatilhas Nike, enviadas pelos familiares exilados nos EUA, e puxando as saias um pouco mais para cima do que seria aceitável, no caso das meninas, gesto de rebeldia típico da idade.

Centro de Havana
créditos: Filipa Cardoso

Em Havana sente-se muito essa dualidade de mundos, também na religião: a maioria da população é católica, mas permanece ainda um culto antigo africano, a “Santeria”, que é praticado sobretudo pela comunidade negra. No “Callejon de Hamel” é possível participar e assistir a estes rituais, e comprar artesanato inspirado nas divindades africanas.

A “Super T.” contou-me muitas coisas sobre Cuba real

Em Havana fiquei hospedada numa “casa particular”, uma espécie de “airbnb” à moda cubana, de uma senhora de meia idade, loira de olhos muito azuis, herança dos pais espanhóis, a quem vou chamar de “Super T”. De uma força incrível, nunca teve medo de ficar sozinha na vida. Despachou o marido porque ele bebia demais e logo a seguir ao divórcio, em 1989, foi para Angola, como engenheira, em viagem de trabalho ao serviço do exército cubano, primeira e única vez que conseguiu sair do país.

Através dela, fiquei a saber muitas coisas sobre a vida paralela em Cuba: o mercado negro dos produtos de higiene básicos, como sabonetes, o racionamento de comida, - não me perguntava o que queria para o pequeno-almoço mas dizia-me o que me podia oferecer, já que nem sempre havia leite no mercado - a falta de liberdade para falar de política, dos salários miseráveis que levam as pessoas a ter de abandonar as suas profissões para viver do turismo, o advogado-jornalista que era também correspondente para publicações americanas. Mas também da força e sentido prático de vida dos cubanos, que os torna extremamente resistentes, criativos, capazes de assumir a vida difícil que levam com um sorriso.

Trinidad
Trinidad créditos: Filipa Cardoso

Depois de Havana fui para Trinidad, uma cidade colonial do século XVI, localizada na província de Sancti Spiritus, uma zona rural de Cuba. Nesta viagem fui conhecendo outros viajantes nas longas viagens de autocarro, como os dois amigos finlandeses, grandes tanto em estatura, como no sentido de humor desbravado, Andy e Jake.

Em Trinidad, com outros dois americanos que se juntaram a nós, fizemos um passeio a cavalo com um guia local, que nos levou por um trilho que atravessava uma imensa vegetação tropical, por entre cascatas e plantações de café e de tabaco. O verde em bruto das paisagens da região é quase idílico e dá-nos a sensação que estamos muito longe de tudo, no meio da selva, e é o melhor lugar para nos libertarmos do bulício de Havana. Numa adaptação de Eça, falaríamos de “Havana e a selva”. A população vive do turismo e da agricultura, mas nitidamente é muito mais pobre do que na capital: na periferia vemos casas de madeira cercadas por lixo e lama e custa acreditar que alguém possa viver naquelas condições.

Trinidad
créditos: Filipa Cardoso

Terminei a viagem em Varadero, para uns últimos dias de praia e mergulhos nas suas águas cristalinas, antes de regressar a Portugal. Apesar de ser um zona balnear cheia de resorts e hotéis também é possível aqui viver uma experiência mais autêntica, ficando hospedado em casa de cubanos.

Varadero
Varadero créditos: Filipa Cardoso

Nisto de viajar sozinha há um antes e um depois

Nisto de viajar sozinha há um antes e um depois. Sinto que esta “Cuba Libre”, foi em vários sentidos, um murro no estômago, dado que travei amizade com pessoas que vivem na sua maioria com menos de 20€ mensais ( o ordenado mensal mais elevado em Cuba é o de um médico e aproxima-se dos 35€). Há um certo receio em falarmos do nosso “mundo de lá”, já que é um contraste muito grande e sentimo-nos envergonhados. Por exemplo, enquanto nós cá falamos de “guardar dinheiro para comprar um carro”, eles falam de “guardar dinheiro para comprar uma bicicleta”. Apesar das enormes dificuldades económicas e sociais, os cubanos são extremamente generosos e simpáticos com os turistas, de uma forma geral.

Por outro lado, a ausência das nossas “muletas” do mundo de lá e o facto de estarmos sós, permite-nos experimentar uma sensação de grande liberdade, já que nos conectamos verdadeira e profundamente com as pessoas e a cultural locais. Claro que há também momentos de solidão e tédio, que são comuns aqueles que viajam sozinhos, mas também há aquela chamada viagem interior, que nos obriga a enfrentar os medos, as carências, as nossas futilidades, para nos conhecermos melhor e sabermos como reagimos fora da nossa zona do conforto. Não vou dizer que voltamos outras pessoas, isso é mito hollywoodesco, mas que nos despimos das nossas “velhas roupas” e regressamos com outras, mais bonitas e coloridas, não tenho dúvidas.

Apesar das suas muitas contradições, Cuba é um país incrível, muito seguro e com muito encanto e beleza humana e natural. Voltarei, certamente e aconselho qualquer um a embarcar nesta viagem de coração aberto.