“Aqui onde o mar acaba e a terra principia” o azul limpo esbarra contra o negro árido lambendo-lhe as rochas esburacadas ‘caídas de Marte’. Aterramos noutro planeta. Um planeta onde surfistas se arriscam numa praia sem areia, calhaus negros aguçados e ondas longas e limpas. Um outro planeta que fica ali ao lado, um inferno arrefecido de vulcões adormecidos, onde o sol se deleita a criar as melhores misturas de cores entre o estéril e a beleza bruta arrebatada pelo vento. Sempre o vento, a calar um pouco o calor e a humidade que se cola à pele. A frase de Saramago abriu o livro O Ano da Morte de Ricardo Reis como poderia ter aberto a sua história em Lanzarote, Reserva Mundial da Biosfera desde 1993, a casa nas ilhas Canárias que o escritor escolheu para viver. Um planeta dentro de um planeta.

A essa casa de Saramago já iremos. Entretanto, entramos no carro e abrimos o mapa que o GPS é, dizem-me, “desnecessário” para desbravar os 845 km2 da ilha, menos de duas horas em quatro rodas se a atravessarmos de uma ponta à outra. Não importa o quilómetro onde estejamos, na boca dos 135 mil habitantes há um nome que não desaparece: Cesar Manrique, filho da ilha, assim lhe chamam. Em 1966, cansado do ritmo de Nova Iorque, Manrique decidiu regressar a casa disposto a fazer de Lanzarote o modelo arquitectónico que provaria ao mundo que homem e natureza podem viver em harmonia. A ele se deve que a construção mantenha a cor branca e que não se construa em altura para que os vulcões sejam sempre os reis da ilha, com excepção de Arrecife, a ‘capital’ de Lanzarote.

Lanzarote
créditos: Paula Alves Silva

É também o branco das suas esculturas que corta o negro da terra. Rumamos a Norte para observar as obras do artista que enchem os guias da ilha canária. É ali, na extremidade de Lanzarote que se encontra o Mirador del Río, quase 500 metros de altitude, um lugar acima das nuvens a desafiar a originalidade arquitectónica, palco de uma paisagem marcante que atravessa o mar até à Graciosa, a chamada ilha solitária com os seus areais brancos, 20 minutos de barco desde Orzola. O azul acompanha-nos estrada fora até aos Jameos del Agua, aqui dentro do túnel vulcânico que escorreu desde o vulcão La Corona até ao mar, onde o árido dá lugar ao exótico, como se, de repente, tivéssemos encontrado um oásis neste deserto negro. Embrenhamo-nos nesta arte que esburaca o convencional, entre palmeiras, figueiras e cactos gigantes entranhados na rocha preta e rugosa que rodeia um lago transparente para, alguns passos depois, nos depararmos com uma piscina branca de água azul cristalino.

Do outro lado da estrada entramos na cave, La Cueva de Los Verdes, uma caminhada ao interior da terra onde o guia reserva uma surpresa. É segredo esta surpresa. E visto ser segredo não poderá ser revelado nestas linhas. Não basta de Manrique. Poderíamos encher os dias na ilha dele, mas façamos o carro rolar só uma vez mais até ao Jardim dos Cactus, uma ‘cratera’ na terra preenchida de picos protegidos por um moinho, miradouro de vulcões e vinhas onde se produz o vinho único Malvasia. Seguimos.

“Entre as nove e as dez da noite a terra abriu-se cuspindo fogo. Da enorme montanha saíram chamas que continuaram sem cessar”. São nove da manhã de um dia qualquer que não ficará registado na História enquanto o relato de 1730 sai das colunas do autocarro que nos conduz pelo Parque Nacional de Timanfaya, onde o preto é surpreendentemente ainda mais preto e o chão ainda mais estéril. Chamaram-lhes Montanhas de Fogo. É aí que principia uma rota de 45 minutos entre os montes que parecem goelas abertas, montanhas polvilhadas da cor do lume que desvanecem para dar lugar ao Vale da Tranquilidade, um longo deserto onde os turistas se passeiam a camelo e o silêncio é apenas cortado pelo som do vento forte, tão forte que nos empurra. O passeio que nos leva ainda ao Vale de La Gueria termina no Islote de Hilario. Ter-se-ão as pessoas questionado como poderá ter vivido um homem sozinho com o seu camelo neste monte inóspito durante 50 anos?

Lanzarote
créditos: Paula Alves Silva

Escorre-nos o tempo pelos dedos. Foge-nos enquanto o carro segue entre pequenas habitações brancas de janelas coloridas ora frente ao mar ora entre súbitas palmeiras nascidas da terra escura. Antes que o sol se deite avançámos pelos cerca de quatro quilómetros no Monumento Natural de los Ajaches em terra batida, o carro em baloiço contra a dureza da pedra vulcânica. É um esforço merecido quando finalmente os olhos encontram o areal branco resguardado pelas rochas. Eis Punta del Papagayo. Mais uma vez o inesperado contraste de cores, como se fosse quase impossível que elas pudessem coabitar. Aqui. E lá na praia Caletón Blanco. Na ilha que denominaram de Hawai do Atlântico, as ondas parecem aqui ter esmorecido e até o vento descansou neste pedaço de terra.

É para Oeste, sobretudo, que rumam as carrinhas carregadas de pranchas, entrando perigosamente pé ante pé da rocha até ao mar em La Santa ou no longo areal de Famara, até que as cores quentes do sol que se vai deitando amanse o negro agreste dos vulcões, vestindo-os de laranja. Tempo de deixar o mar e rumar a terra.

Na casa do filho adoptivo de Lanzarote

Chegamos “A Casa”. A de José e Pilar. O som da máquina de café inunda a habitação agora vazia. Cheira a café português viajado desde o Alentejo, o preferido de Saramago. Entregam-nos a chávena na varanda com vista para o mar e as dunas brancas da ilha Fuerteventura, enquanto nos fixamos na pedra colocada no jardim de onde o escritor admirava diariamente a paisagem. Havia sempre um café português pronto para os conhecidos e desconhecidos que chegavam a “A Casa”. A tradição mantém-se nesta que agora é parte do dia museu, parte do dia habitação, onde dormem memórias, muitos livros e obras de arte, maioritariamente portuguesas e espanholas. Saramago é uma memória tão presente que julgamos que possa regressar a qualquer instante. Como se a morte nunca lhe tivesse chegado. Ainda aqui está o prato na mesa no lugar mais próximo da porta da varanda; a cadeira na sala onde ele gostava de ler, com a sua manta; o cesto do cão Camões no chão do escritório ao lado dos pés de Saramago, se ele ainda aqui se sentasse para escrever. E o amor. O amor de José e Pilar em cada recanto, quase nos fazendo sentir intrusos nesta história que só a eles pertence. O relógio parado nas dezasseis horas, a hora em que Saramago conheceu Pilar, um pequeno coração no lugar onde o escritor dormia, fotografias e objectos pessoais a invadir todos os espaços. Saramago nunca partiu.

Lanzarote
créditos: Paula Alves Silva

Também aqui vivem Pessoa, Camões, o Eça e Garrett. Os maiores, diria ele. As recordações chegam-nos de forma tão pormenorizada e sentida pela boca do guia que tenho de confirmar enquanto desfolho a primeira publicação do escritor, cheia de anotações.
- Conhecias Saramago?
- Sim, responde. E um largo sorriso diz-nos o que as palavras não saberiam dizer.

Atravessamos a rua. Paramos frente à oliveira que teimosamente cresceu numa terra impossível, carregada desde Lisboa por José para inaugurar a sua casa-biblioteca. Foi entre o silêncio dos livros acompanhado de música clássica, sempre música clássica, que nasceram muitas das suas publicações. Até à última. Ali entre livros dedicados, publicações traduzidas nas mais variadas línguas, nomes femininos destacados numa das esquinas da biblioteca, muitas cartas. Os livros de José e Pilar, o refúgio de Saramago do mundo, assim lhe chamou, em Tías.

“Eu nasci para morrer nesta ilha. É um sentimento de pertença tão intrínseco que dificilmente as pessoas conseguem entender.” A afirmação sai segura da boca de Lorenzo, outro dos filhos da ilha, na noite de Nuestra Señora de los Dolores, a maior festa popular de Lanzarote. Nem todos entenderão, mas o filho adoptivo, Saramago, terá possivelmente compreendido. E colocou-o em palavras. Estão inscritas à entrada de Tías no monumento erguido em sua memória: “Lanzarote não é minha terra, mas é terra minha”. Nossa.