Preso numa rocha xistosa e a poucas metros do Douro (esta é outra faceta mágica) é como se estivesse em suspenso num salto para a água.

Cavalo de Mazouco
créditos: andarilho.pt

Um fragmento no tempo cujo fio contínuo é ditado pelo mistério que permanece até aos dias de hoje. Tem um traço bem definido. O salto é maior do que as pernas.

Cavalo de Mazouco
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“É um exemplar muito bem conseguido, até do ponto de vista do grafismo, mau grado as patinhas curtas, mas tem uma dinâmica. Basta ver aquela linha do dorso. As patas de trás, embora não estejam completamente representadas, estão esticadas para trás, simula um salto. É mais um pequeno salto do que uma corrida. Quase que conseguimos imaginar... eles não tinham cinema, mas a imagem é cinematográfica.

Cavalo de Mazouco
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A descrição é de Nelson Campos, o arqueólogo que descobriu para a Ciência o Cavalo de Mazouco. Na altura era um estudante fascinado pelo que lhe contaram desta gravura com 62 cm de comprimento e 37.5 cm de altura, em parte, devido à vistosa crina que alguns locais interpretavam como sendo o chifre de um carneiro. “As pessoas chamavam-lhe carneiro porque tem as patas mais curtas do que um cavalo. As patinhas, de facto, não se coadunam com a ideia que nós temos do corpo de um cavalo. Por outro lado, interpretavam como um chifre do carneiro a crina do cavalo.

Cavalo de Mazouco
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Depois, para complicar, há uma diáclase que está ao nível do corso do animal que fazia com que se parecesse que essa é que seria a linha do pescoço e a crina era o chifre. Mas era conhecido apenas por duas ou três pessoas que tinham prédios naquela zona e mais um ou outro curioso. Raramente lá iam. Aquilo era desconhecido mesmo da população local. Havia era a ideia, e isto é que é o interessante para o povo, é o tesouro. Uma lenda que dizia que o carneiro estava a olhar para um tesouro. Neste caso, estaria do lado oposto do ribeiro, para onde apontava o olhar do carneiro.”

Suspenso na vertical da rocha, próximo de duas outras gravuras com contornos imprecisos, o Cavalo de Mazouco, enquanto não salta para a ribeira de Albagueira, que entretanto se fundiu com o Douro, é de uma beleza e doçura extraordinária.

Cavalo de Mazouco
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Esta é outra das suas facetas mágicas: o encantamento. Mesmo de quem nunca o tinha visto. “A primeira vez que eu ouvi falar disto era miúdo e estava em Angola. O meu pai dizia que um dia que viéssemos à terra ele ia ensinar onde estava um tesouro. É evidente que estas coisas não se podem dizer aos miúdos. Fiquei logo com a imaginação a fervilhar. Quando um dia viemos eu perguntei pela história do carneiro e do tesouro.  Ele respondeu que já não sabia bem onde era. Mas eu não desisti.

Cavalo de Mazouco
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Em 1977, um dia perguntei a um primo, ao Abílio, quando fomos regar umas laranjeiras numa zona próxima.  Ele disse que era do outro lado do ribeiro, que tinha ido lá uma vez, já não se lembrava bem. Andámos depois à procura.

Cavalo de Mazouco
Acesso ao lugar onde está a gravura créditos: andarilho.pt

Não foi fácil, estava tudo cheio de mato denso com giestas mais altas do que nós.  Com o sentido de orientação dele conseguiu descobrir o local. O acesso era do lado oposto ao caminho de agora e tinha de se saltar umas fragas.

Cavalo de Mazouco
Picão do Navalho créditos: andarilho.pt

Eu olhei para aquilo e pensei, que coisa estranha. E agora onde estará o tesouro?! O meu sonho era o tesouro.  Estendi os braços encostado à rocha, segui o olhar na direção oposta onde há um veio de quartzo que sobe pelo meio de um maciço granítico, o Picão do Navalho. Tem de estar ali.”

Cavalo de Mazouco
Nelson Campos créditos: andarilho.pt

Nelson Campos ficou de tal forma seduzido pelo tesouro do Cavalo de Mazouco que a sua vida está profundamente associada à gravura e, de certa forma, ao fabuloso conjunto de gravuras rupestres do Vale do Côa, no qual, ele foi o pioneiro na descoberta.

Cavalo de Mazouco
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Mas primeiro descobriu para a ciência o Cavalo de Mazouco e rapidamente percebeu que o tesouro da lenda era outro.  “É evidente que eu percebi posteriormente que o tesouro era o próprio cavalo. Tínhamos de ir às dimensões antropológicas, do imaginário. Normalmente onde há estas coisas, o desconhecido espicaça sempre a imaginação e daí o que os antropólogos chamam o maravilhoso, o imaginário. É o mistério, por vezes os medos, as pessoas criam sempre histórias à volta. São lugares mágicos. De modo que, eles têm de criar algo e isso ajudou a preservar.”

Cavalo de Mazouco
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Fez investigações, recolheu informação como por exemplo no livro do Abade de Baçal e, em 1981, o conhecimento deu nova vida ao cavalo. “Isto andou sempre como uma obsessão na minha cabeça. Mais tarde, em 1981, numa aula de pré-história, ao ver uma projeção de slides das grandes pinturas da arte clássica paleolítica, Altamira, Lascaux... em que lhes chamavam os animais grávidos porque, mesmo que fosse machos apareciam sempre com grandes barrigas. Cá está, aquilo não é carneiro nenhum.

Cavalo de Mazouco
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O cavalo tem as patas curtas porque a rocha não sobrava e eles não lhes esticaram mais as patas. A ideia era sobretudo da grande pança e o alinhamento do traço. Era aquilo!. No final fui ter com a professora e perguntei o que havia em Portugal do paleolítico. Respondeu-me que havia apenas na gruta do Escoural umas pinturas muito fracas. Perguntei-lhe também se só podia haver em pintura e respondeu-me que também podia haver em gravura. E só pode aparecer em grutas? Sim, é uma arte das cavernas.  Retorqui: “e se eu lhe disser que há uma coisa destas algures na minha terra.  Em Freixo de Espada à Cinta, em Mazouco. Está bem, traga uma fotografia”.

Cavalo de Mazouco
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Nelson Campos fez um levantamento do local, produziu um decalque da gravura, tirou uma fotografia e deu a conhecer o material aos professores do seu primeiro ano de curso na Universidade do Porto. O propósito era ele próprio fazer um estudo mais aprofundado a defender a tese de que se tratava de uma gravura do Paleolítico:
Os professores não lhe deram essa oportunidade. Perceberam o valor do testemunho e a relevância do achado e foram eles a fazer o trabalho cientifico.

Cavalo de Mazouco
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“Eu era muito jovem, tinha 18 anos.  Os professores é que sabem. O aluno não tem competência... quem era eu? Um caloiro da província. E estudaram, fizeram um artigo científico.” Interrogado se não sente injustiça pela forma como decorreu este processo, Nelson Campos responde, “Isso dou de barato. O pior vem acontecer depois. Comparativamente com o que veio a acontecer depois, não foi nada.  Este tema ficou-me sempre na cabeça. Continuei a olhar para as pedras e em contextos análogos. Até aí, alguns só olhavam em termos horizontais. Tinham estado no Vale do Tejo e aí são sobretudo contextos planos, horizontais e por vezes passam ao lado das coisas. Eu olhava para tudo. Verticais e horizontais. Depois, não sei.

Cavalo de Mazouco
Museu do Côa créditos: andarilho.pt

Ou é o destino, a sina... tive o azar de encontrar coisas do mesmo género. No Côa, na Canada do Inferno.” Uma polémica que o envolveu e que um dia espera esclarecer cabalmente. Regressando ao Cavalo de Mazouco, os professores que desenvolveram o trabalho de investigação, com muitas hesitações concluíram o que para Nelson Campos já era o ponto de partida: tratava-se da primeira gravura rupestre do paleolítico ao ar livre conhecida no meio científico.  “A primeira que foi descoberta em Portugal e no contexto europeu. Quando foi dada a conhecer foram colocadas muitas dúvidas, como se poderia ter preservado.

Cavalo de Mazouco
Registo de um especialista espanhol que confirma a tese de Nelson Campos de que se trata de uma gravura rupestre do Paeolítico créditos: andarilho.pt

Até aí, a ideia que prevalecia é que a arte rupestre do Paleolítico era uma arte de grutas, cavernícola. Com os expoentes máximos em Altamira, Lascaux... todas as grutas Cornija Franco-Cantábrica. Aparecer uma coisa destas ao ar livre ou ainda que ligeiramente protegida por um ressalto de rocha, não em contexto fechado mas aberto, houve quem pusesse muitas dúvidas.”

Cavalo de Mazouco
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Talvez a natureza tenha dado um contributo para preservar o tesouro porque, devido à erosão, algumas rochas mantêm-se no topo da encosta e funcionam como cobertura de proteção. As gravuras são únicas nesta zona. “Que se saiba é um caso isolado. O cavalo foi dado a conhecer ao mundo científico em 1981 e no ano seguinte fez-se uma sondagem. Não apareceu nada, nem sílex nem quartzo que se pudesse associar, o que veio a adensar mais as dúvidas de quem as tinha.

Cavalo de Mazouco
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No contexto onde está a gravura, o rio subiu com a construção da barragem espanhola Saucelle. O que estamos a ver hoje não é a quota natural nem o enquadramento que existiu durante milhares de anos, até meados do século passado. Ouvi dizer que em baixo havia uma azenha e que nas proximidades havia mais qualquer coisa.

Cavalo de Mazouco
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Em 1995/96 houve um abaixamento de cerca de 20 metros do rio e por mais que tivesse procurado nas fragas mais abaixo eu não encontrei. Também tenho dúvidas que se houvesse, se tivesse preservado. A magia de quem desenhou o Cavalo de Mazouco mantém o efeito inicial. Continua a cumprir o sonho das crianças que acreditam em tesouros. É também um testemunho de que a beleza é um simples traço, tão simples como a água que corre dois a três metros abaixo das rochas onde estão as gravuras.

Cavalo de Mazouco
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Citando o próprio Nelson Campos num artigo que escreveu intitulado Do Carneiro ao Cavalo de Mazouco – sobre o feitiço do cavalo de Mazouco, “só o rio o saberá. Ou o Sol, que em cada manhã vem fecundar de luz este recesso fragoso onde as gravuras se aninham. Aí, o tempo e o mistério são definitivamente eternos”. O tempo de um salto para a beleza e a eternidade.

Cavalo de Mazouco
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A magia do Cavalo de Mazouco: um salto para a beleza eterna faz parte do programa da Antena1 Vou Ali e Já Venho, e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.