Encontro-me na linha do Equador, nas ilhas Galápagos. A latitude é aproximadamente zero. Os raios solares, que incidem diretamente sobre mim, batem com a mesma intensidade nos hemisférios: norte e sul. É Primavera no hemisfério norte. Tenho a memória fiel de, nesta época, noutros tempos, sair da cidade para outro norte profundo, o de Portugal. As encruzilhadas iam dar a lugares com poucas casas e a ouvidos que escutavam bem a terra. O nome das povoações por onde passava, Urrós, Bemposta, Sendim, eram sempre uma estrada de reencontro e de sensação de existência. Pensava que as pessoas que ali viviam, por estarem mais longe, tinham mais rugas. Acreditava que essas rugas e a roupa gasta conduziam à imortalidade.

Hoje sei que não. As rugas têm apenas a eternidade de uma história enquanto a memória durar. Que o diga Ana Maria ou, como é conhecida, tia Anica Pastora, que vive em Vila Chã da Braciosa, o lugar onde estão as suas histórias, os refogados de cebola e alho, os sinais na pele e outros pedaços iguais ao simples. Anica, que sabe que é da época do tio Manel Cruz mas não sabe a sua idade, tem uma bolsa de estudos em colchões de palha, burros, ovelhas, vacas mirandesas e uma tourina (vaca preta e branca) que lhe custou três contos há muitos anos. Ainda tem algumas manjedouras, mas, diz, está tudo abandonado, mas não deixo a minha casa nem por nada. Fui eu que carreguei a areia com que a construíram.

Com a experiência acumulada ao longo das estações dos anos ajuda os amigos e proprietários, Glória e António, de um antigo palheiro velho que foi reconstruído em memória da família e o batizaram de Casa d’Augusta (@casadaugusta). O conceito resume-se a ecologia, sustentabilidade e bem-estar.

Foi aqui que me sentei com as duas, à conversa, há precisamente uma Primavera atrás, num pátio interior onde as pessoas se demoram nas conversas por se sentirem acolhidas. A minha sorte aumentou quando chegou à mesa um chá e um bolo caseiro e pensei como um Chewong: “os seres humanos não deviam comer sós, a comida deve ser partilhada”. Primeiro comemos e depois falamos, como sugerem as leis do estômago. Se estivéssemos a beber vinho e a comer uma chouriça assada em cima do pão saberíamos logo que pertencíamos ali. A forma de abrir o pão e cortar uma chouriça pode definir a região de onde somos, diz Glória, elogiando de seguida a blusa de Anica.

Devagar, um som adocicado toca-me nas pernas e sobe para o banco onde estava sentado. A gata Espinha, um dos animais da casa, decide espreitar o caderno onde vou anotando a gratidão do momento e os detalhes da vista dos janelões enormes pintados pela incidência do sol. Os olhos desviam-se de vez em quando e não precisam esbarrar na imaginação. As cores estão ali: a brancura da folha, se quisermos um folha branca; o amarelo da flor, se optarmos por outra cor. O que não está, porque é selvagem e nem deve estar, caminha-se e vê-se ali perto: um miradouro que nos mostra que as escarpas continuam altas e é o seu tempo que dá forma ao rio Douro, uma coreografia de abutres e águias que arranham o ar.

Glória sabe os atalhos para nos colocar, sem asas, a voar acima destas aves. Tem passeios organizados para todas as rótulas. Quem preferir pode ir de lambreta ou jipe. Há vinhos, queijos e chouriços para todos os tipos de pele. Há bolos e doces que repousam no seu lugar, nas bocas que podem receber açúcar. E há a vida, lá fora, coberta de nuvens que vão passando como o presente. Até chegar ao futuro de uns cabelos brancos, curtos e fortes, como os de Anica.

Antes de ir, empapado de sentir, pergunto-lhe se posso deixar um poema. Com as mãos amortecidas sobre a mesa, questiona, o que é um poema? Respondo que é uma espécie de receita de folar da Páscoa, mas que substitui os ingredientes normais por emoções.

…. imagino-a, pequenina,

ainda desencontrada de mim,

quando se deitava na terra

a olhar para o tecto do mundo,

com as ovelhas a escutarem-lhe o silêncio ….

Arranco a folha de linhas, soltando-a do meu bloco, e pouso-a em cima da mesa.

Quanto custa este poema?, perguntou.

Custa-me um obrigado, a si, por me possibilitar uma imagem mais envolvente do seu mundo.

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