Da multidão que povoou Veneza nos tempos do pintor Canaletto, conhecido pelas pinturas das paisagens da Sereníssima do século XVIII, apenas quatro "squeri" sobreviveram. Todos estão paralisados, ou quase, desde que a pandemia de coronavírus deixou a cidade sem as suas icónicas gôndolas.

"Veneza sem as suas gôndolas é sombria, não faz sentido", lamenta Roberto Dei Rossi, um dos poucos carpinteiros a manter viva a tradição do "squeraoili", os construtores desses longos barcos pretos, únicos no mundo.

"Toda as vezes que lanço um novo, é como assistir a um nascimento, é a minha criação", diz este veneziano de 58 anos, sorrindo.

Roberto diz que constrói, artesanalmente, de quatro a cinco gôndolas por ano. São cerca de 400 horas de trabalho para cada uma.

Fabricantes de gôndolas de Veneza enfrentam maré baixa na pandemia
Elisabetta Tramontin sands a gondola at the historic Tramontin and Figli boatyard in Venice on May 27, 2020, which has been manufacturing since 1884 gondolas renowned for their ease of rowing, build strength and design, as the country eases its lockdown within the COVID-19 pandemic caused by the novel coronavirus. - Handmade gondola manufacturers continue to work in Venice, severely hit by historic floods last year and the COVID-19 pandemic in 2020. (Photo by MIGUEL MEDINA / AFP) créditos: AFP or licensors

Até Versalhes

As embarcações são constituídas por 280 peças de madeira de oito tipos diferentes (carvalho, larício, nogueira, cerejeira, tília, cedro, mogno e pinho) e duas peças de metal localizadas na proa e na popa. Medem 10,8 metros de comprimento e 1,38 metro de largura e pesam 600 quilos.

Quem compra estas embarcações são quase exclusivamente gondoleiros, que pagam entre 30.000 e 50.000 euros pela ferramenta de trabalho, conforme o acabamento. A gôndola é feita sob medida, dependendo do peso de cada uma.

"Mas houve alguns fãs que fizeram encomendas nos Estados Unidos, na Alemanha e no Japão", conta Roberto, orgulhoso.

A história conta que algumas foram dadas, com o gondoleiro incluído, pelo doge ao rei Luís XIV da França para a "flotilha real", que percorria o grande canal do Palácio de Versalhes no final do século XVII.

A maior parte da frota está agora a navegar nos canais de Veneza, movidos pelo remo dos quase 400 gondoleiros (o número é limitado). A licença de navegador é obtida na câmara municipal.

Agora, sem os casais apaixonados, devido à crise de saúde global, e após a inundação histórica do final de 2019, que já atingiu o turismo, os gondoleiros enfrentam a maré baixa no setor.

Este longo período de inatividade forçada teve impacto nos estaleiros, onde as gôndolas também são reparadas.

É o caso do "squero" Tramontin, localizado às margens do canal Ognissanti.

Trata-se da oficina mais antiga de Veneza ainda em operação, administrada por duas irmãs desde a morte do pai, Roberto, em 2018, herdeiro de uma dinastia de "squerarioli" fundada pelo bisavô em 1884.

"Sem o nosso pai aqui, faltava o mais importante. Então tivemos que nos reinventar, mas, com paciência, vamos conseguir", afirma Elena Tramontin, de 33 anos, que quer fazer a saga da família perdurar, ao lado da irmã Elisabetta.

Nenhuma das duas achou que iria seguir a profissão do pai. Ambas tiveram de enfrentar o desafio, cercando-se da experiência dos "maestri d'ascia" (os "mestres do machado"), como são chamados os carpinteiros especializados em dar vida às gôndolas. Há cada vez menos desses artesãos.

"A minha irmã é responsável pelas relações públicas, pela parte cultural da atividade, o que é importante. E eu dedico-me a pintar e a fazer alguns pequenos reparos nos barcos. De resto, tentamos dar o máximo de trabalho possível aos artesãos à nossa volta", conta Elisabetta, de 30 anos.

"Com este ofício, não fica rico. Tem que ter paixão, mas isso dá muita satisfação", acrescenta ela, com formação em escultura, determinada a perpetuar a memória do pai e a trabalhar para que a casa "Tramontin e filhos" se transforme em "Tramontin e filhas".