Há sempre um momento em que Londres faz questão de reduzir qualquer visitante de outro país europeu à condição de pacóvio. A mim aconteceu numa sexta-feira, 4h da manhã, à saída de uma festa numa casa ocupada no bairro multicultural de Brick Lane. Precisamente naqueles gloriosos minutos em que, por ter encontrado um sítio aberto para lá da 1h00 – um grande feito para um novato na cidade -, me sentia um viajante astuto. Cheguei mesmo a tempo de apanhar o último autocarro para casa, Putney, no sudoeste da capital, mas o motorista cismou que o meu bilhete tinha caducado há três minutos e não me deixou entrar. Apelei ao bom senso – um conceito mais querido nos países latinos que a norte da Europa – mas gerou-se uma discussão e, inconformado, recusei-me a pagar uma nova passagem. “Não quero saber, vou a pé!”, gritei, atingido no orgulho. Gargalhada geral.

Tanto os meus amigos residentes na cidade como os passageiros, que pouco antes me lançavam insultos, não se pouparam nos risos trocistas. “Boa sorte... talvez ainda consigas jantar em casa amanhã”, atirou um deles. Explicaram-me então que Londres não era Lisboa e que a caminhada me ia durar quase quatro horas; e estamos a falar de bairros que estão dentro dos dois primeiros anéis da área metropolitana. Pedi desculpa ao condutor, adquiri bilhete e subi ao segundo andar do veículo debaixo de uma pequena ovação.

londres autocarro

Londres tem cerca de nove milhões de habitantes, uma população semelhante à de todo o território português. Sensivelmente 50 quilómetros separam os seus limites de norte a sul. É uma metrópole vasta e desmesurada, aglutinadora de gentes do seu velho império e de reinos rivais, uma cidade que ninguém conhece no seu todo e que não deixa ninguém ser mais notório que ela própria.

Se ainda não visitou ou mal pode esperar por descobrir um pouco mais desta cidade única, aproveite os voos para Londres que a TAP disponibiliza, a preços convidativos, desde os principais aeroportos portugueses.

Visitei-a pela primeira vez imbuído da vã ambição de a explorar na plenitude e os meus ténis perderam a sola. Big Ben, a Torre, a Ponte, London Eye, Buckingham, Trafalgar, muitas fotos tiradas aos locais que já tinha visto em fotos. Raramente são estes, é sabido, que mais impressionam – talvez pelas elevadas expectativas que neles depositamos ou pela sensação de familiaridade que nos transmitem.

Boquiaberto fiquei com os grandes museus da cidade: o Museu de História Natural, o Museu Britânico e o Tate Modern. No último, sabiamente instalado num antigo complexo industrial nas margens do Rio Tamisa, estão algumas das mais importantes peças de arte contemporânea: instalações de Warhol, quadros de Dali e magnéticos vídeos de Viola constam da colecção permanente. A esplanada do café, virada para o rio, também vale a pena. Quanto ao de História Natural, basta a entrada para perceber a magnitude do seu acervo: desde 1905, os visitantes eram recebidos pelas ossadas de um gigantesco dinossauro, que em 2017 foram substituídas pelas de uma baleia azul.

museu de história natural londres

Não querendo subestimar animais de pequeno porte, não estamos a falar de esquilos nem de coelhos. Nesta catedral da biologia e da geologia, estão objetos únicos e de valor incalculável como a primeira edição de “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, um urso polar embalsamado, uma amostra da maior pepita de ouro jamais encontrada, corpos petrificados das vítimas de Pompeia ou um copo feito há quase 15.000 anos a partir de um crânio humano. Seria o melhor museu da cidade se não existisse o British, que com os seus oito milhões de objetos reconstitui a história da civilização desde os australopitecos até ao presente; podemos vê-lo como uma caixa-forte dos achados arqueológicos mundiais ou a arca onde os ingleses depositaram os tesouros roubados pelos sete mares. A Pedra de Roseta, o mais famoso vaso romano, múmias de gatos egípcios e o colossal busto do faraó Amenófis III e até uma das misteriosas estátuas da Ilha da Páscoa partilham o mesmo edifício.

Quanto custa a visita a estes três baluartes da cultura mundial? Nada. Os três museus são gratuitos. Londres tem uma elite absurdamente rica e uma diferença grotesca entre classes sociais, mas é bastante igualitária no que toca ao acesso à cultura.

globe theatre

Sem sair das artes, o Globe Theatre, reconstruído a escassos 250 metros do palco original usado por William Shakespeare para apresentar as suas peças eternas, transporta-nos para a genialidade com que o dramaturgo inglês revolucionou o teatro nos séculos XVI e XVII. Assisti a “A Tempestade” e, apesar de não ter percebido metade dos diálogos porque os atores seguiam o texto original escrito no inglês da época, deliciei-me com os figurinos das personagens e a arquitetura da sala, construída com as técnicas da época em carvalho e junco. Que tenha melhor sorte que o primeiro, destruído por um grande incêndio em 1613. Em março, estarão em cena várias peças, entre elas “Romeu e Julieta” e “Eduardo II”.

Fui um turista muito mais relaxado nas visitas posteriores. Pude assim apreciar devidamente a diversidade de uma cidade que concentra no mesmo passeio o turbante de um sikh indiano com o sobretudo de um executivo da City, pernas expostas por minissaias à chuva e ao frio, septuagenárias de cabelo pintado de roxo. Ninguém se importa com a aparência em Londres; ninguém é considerado maluco se tiver o rosto coberto por piercings ou andar no metro de robe e de pantufas. Ninguém é mais louco do que Londres. Camden é um bom sítio para o atestar.

camden londres

É o ecossistema da subcultura, das tatuagens, do rock, do punk e do electro, da gente que não dorme. Não há outra cidade no planeta que tenha dado ao mundo tantas bandas históricas. Segurem-se: Pink Floyd, Rolling Stones, Queen, The Police, Sex Pistols, The Clash, Bowie, Iron Maiden, Led Zeppelin, Amy Winehouse. E podia encher esta página com outros nomes. Mas é mais fácil percorrer o mercado de Camden e encontrar as t-shirts e os pins de cada uma delas, entrar nas lojas e tocar nos seus discos, assimilar como dali as guitarras mudaram o mundo. E, se possível, assistir a um concerto no templo musical de Camden, a Roundhouse, onde passaram quase todos os nomes acima mencionados, somamos os Ramones, Patti Smith ou Costello e onde Jim Morrison entregou aos The Doors o maior e mais ácido encore da história do rock.

Mas a Roundhouse não está presa ao passado: organiza concertos de estilos contemporâneos, conferências e exposições. Presenciei lá um excelente concerto dos Cake, o primeiro que vi com intervalo; mais uma vez, à frente do seu tempo, introduziu-me à corrente hipster com o público a delirar com a notícia de que parte das receitas de bilheteira revertiam a favor da plantação de árvores.

Depois de uma noite de festa, sou fã dos pequenos-almoços ingleses, os explosivos full english breakfast: ovos estrelados, bacon crocante, morcela, feijões banhados em molho de tomate. Mas com o tempo – e com uma visita à casa de Sherlock Holmes em que passei mais tempo a lutar contra a azia do que a resolver os crimes de Baker Street – percebi que são de evitar os tascos que abusam do óleo. O Maggie's, em Lewisham, ou o Regency Cafe, em Pimlico, oferecem a mesma ementa sem transformar o sangue em óleo de girassol. Há muito que comer bem deixou de ser um problema na capital inglesa; sim, a comida tradicional britânica não é muito variada, mas há restaurantes de todo o mundo que tornam acessível almoçar ceviche peruano e ter tikha masala ao jantar. Também se multiplicam os mercados de comida de rua, como o de Borough.

pequeno almoço inglês

Para os fãs de pubs, os mais antigos são os que conseguem combinar aromas históricos ao travo das pints. O The Lamb&Flag, em Covent Garden, é muito acolhedor, enquanto o The Prospect of Whitby, em Wapping, colecionou mitos e lendas desde que marinheiros e piratas o frequentavam em 1500. Cerveja sugerida: a ruiva London Pride.

Depois, é só escolher entre um passeio ao longo do Tamisa, o sossego dos parques ou as compras nas lojas vintage do Soho. Londres é um sonho para os turistas: há sempre o que fazer ou visitar.

Afinal, a cidade é o motor da ilha em que a montaram, foi capital de um dos maiores impérios existentes, talvez seja também a maior referência da Europa. No referendo para a saída do Reino Unido da União Europeia, Londres votou contra. O fantasma do brexit é omnipresente para a maioria dos londrinos, gente aberta, cosmopolita, cidadãos do mundo. Mas também o é para os europeus que reconhecem a inevitabilidade desta cidade para a solidez europeia; a hipótese de ter de pedir visto para aterrar em Heathrow ainda se afigura surreal. Bem sei que teremos sempre Paris. Mas não nos levem Londres, please!

Texto: Tiago Carrasco