Para uma inglesa no final do século XIX, o livro Hints to Lady Travellers: At Home and Abroad (Royal Geographic Society) não podia faltar na mala de viagem. Escrito por Lilias Campbell Davidson, em 1889, este foi o primeiro manual de viagens dirigido especificamente a mulheres, com conselhos práticos para aquelas que queriam descobrir novas culturas, mas com responsabilidade.

Isto porque, até então, percorrer o mundo era apenas um privilégio masculino. Uma boa mulher deveria ficar em casa a fazer as lides domésticas.

Estes são alguns dos conselhos descritos no livro de Davidson para as inglesas victorianas mais corajosas e ousadas.

1. Viajar sem carregar grande peso

Como devem estar a imaginar, há 130 anos as malas não tinham rodas e não eram feitas de materiais leves, por isso recomendava-se levar apenas uma, cheia de peças básicas lá dentro. Caso a mulher contasse com uma criada, era permitido levar várias malas, até porque caberia a esta carregá-las.

Se existisse necessidade de dormir no comboio, então era recomendado levar uma bata de flanela e algo com que se cobrir durante a noite, isto porque as mantas nos transportes ferroviários eram anti-higiénicas. Sem esquecer a almofada de penas e um gorro de lã ou seda para um sono recuperador e também para conseguirem manter o penteado no dia seguinte.

Para evitar surpresas, no manual aconselhava, caso conseguissem, levar uma banheira portátil, uma vez que não existia em todos os hotéis, e os que tinham cobravam um valor extra. Para poupar espaço, indicava-se que guardassem aí vários pertences, desde joias, roupa, produtos de higiene ou até um jogo de toalhas.

2. Um kit de emergência

Nunca esquecer os comprimidos e remédios para gripes e dores de cabeça, mas o mais importante era levar a garrafa de brandy para o catarro, o azeite, as flores de camomila… E por último, caramelos de menta para enjoos e sais aromáticos para os desmaios.

Hints to Lady Travellers: At Home and Abroad
créditos: Hints to Lady Travellers: At Home and Abroad

3. Controlar a dieta

Evitar comidas com demasiada gordura ou pouco saudáveis. De acordo com o manual, segundo os médicos, comidas com caldos seriam o melhor para um viajante.

Evitar comer pão muito fermentado e 'matar' a fome com bolachas salgadas ou sanduíches, e mesmo para os sanduíches havia regras: os de sardinha, anchovas, foie gras ou marmelada são demasiado indigestos e os de presunto dão sede. Podiam optar por carne de língua de vaca, frango, cordeiro, ovo cozido, salmão, vitela ou porco.

Era de extrema importância levar um abridor de latas ou garrafas e o vinho deveria ser tomado com moderação, já os licores eram a evitar. Café, chocolate quente, limonada caseira ou chá eram permitidos. Quanto a doces, apenas um pouco de pudim.

4. Levar a criada ou não?

Aqui o manual é bastante duro: “Geralmente, as criadas são inúteis e ficam ainda mais inúteis em situações de emergência. Se precisas mesmo dela, pelo menos que vá contigo na mesma carruagem de primeira classe, pois numa inferior não servirá mesmo para nada”.

5. Roupa formal ou informal

Aqui nada de novo. Viajar de forma simples, com indumentárias cómodas e confortáveis. Flores e joias não são bem-vindas porque chamam a atenção pela vulgaridade. Em causa estava o orgulho da nação e estas viajantes eram o espelho do Reino Unido.

Algo expressamente proibido era levar calças, assim como os saiotes brancos, podendo levar esta peça de roupa interior mas em cores escuras. Se a viagem fosse no inverno, tinham de levar um sobretudo de seda cinzento ou castanho. Quanto ao calçado, melhor levar botas em vez de sapatos, de preferência que atassem com cordões.

Veja um excerto do livro original (em inglês) na galeria de fotos abaixo.

6. Cuidados com os ladrões

Era importante levar o dinheiro num bolso secreto, podendo até ser guardado no saiote, para gastar em imprevistos. As moedas eram para dar ao acompanhante.

7. Gorjetas?

Nunca, mesmo que o motorista fosse merecedor de uma moeda.

8. Deixar o acompanhante sossegado

Para aquelas que viajavam com acompanhante, não o podiam importunar com perguntas como: “para onde vamos?”, “quando chegamos?”, “falta muito?”. Era considerado um comportamento ofensivo e impróprio, podendo tornar a viagem maçador para ele. Como entretenimento deviam optar por ler um livro.

9. Alojamento

O check-in era sempre feito pelo acompanhante, era o seu dever. Como naquela altura não havia TripAdvisor, as experiências/opiniões de amigos, familiares e pessoas de alta sociedade eram as que contavam. Preferencialmente, deviam optar por um alojamento bem mobilado.

Naquele período, as desconfianças com as senhoras das limpezas eram muitas, por isso, deveriam levar com elas a chave do cofre onde guardavam os pertences de maior valor.

Os lençóis tinham de estar extremamente secos, porque lençóis húmidos eram sinónimo de doenças mortais.

Aquelas que viajavam sozinhas deveriam informar o gerente dos horários das refeições, isto porque tinham de ser escoltadas desde o hall até à mesa, evitando assim a vergonha de cruzarem sozinhas uma sala com muitos olhares.

Hints to Lady Travellers: At Home and Abroad
créditos: Hints to Lady Travellers: At Home and Abroad

10. Para as que viajavam sozinhas

“Os maridos não são objetos de viagem imprescindíveis. Este manual de sobrevivência não refere que é obrigatório levar maridos”, dizia Mary Kingsley, uma famosa exploradora e escritora inglesa.

A melhor recomendação para quem viajava sozinha era pegar num mapa e um guia de viagem, para evitar ter de pedir direções a desconhecidos.

Porém deixavam um aviso: as viajantes solitárias costumam ser um alvo fácil para homens mal-educados. Quem for confrontada com um cenário destes, não deve responder. Para evitar situações embaraçosas, o melhor é sentar ao lado de outra senhora ou perto de um homem com mais idade.

Recordar ainda que apenas os homens estavam habilitados a iniciar uma conversa com uma senhora, nunca o contrário.

11. Os perigos de uma viagem

Se se deparassem com uma situação de muito perigo, como por exemplo um confronto entre homens ou um assalto, nunca, mas nunca, deveriam interferir por iniciativa própria. Tinham de esperar que fosse primeiro um homem acudir a situação.

Como dizia Mary Hall (a primeira mulher que percorreu o continente africano desde a Cidade do Cabo até ao Cairo): "Tome todas as precauções e abandone todos os medos".

12. Deixar os preconceitos em casa

Nunca rir dos costumes ou desvalorizar a comida estrangeira, por mais estranho que possa parecer. Se na Alemanha servissem carne com marmelada ou carne crua de vaca, em Itália ervilhas com feijão no mesmo prato ou em França filete de cavalo ou pernas de rã, não deveriam fazer comentários ou gestos de repugnância.

Tinham de adaptar os gostos pessoais à nova gastronomia. Caso recusassem provar, deveriam afastar o prato, mas de uma forma dissimulada.

"As melhores viajantes são as que comem gato na China, as que provam óleo de fígado de bacalhau na Gronelândia, as que fumam shisha em Marrocos, as que caçam perdizes no Reino Unido, as que colocam um turbante na Turquia e as que montam um elefante na Índia."

As regras de há mais de 130 anos para as mulheres podiam ser bem distintas, mas o espírito, esse, manteve-se.