A mudança de trabalho pode ser, compreensivelmente, um motivo de ansiedade para algumas pessoas. Para João Sintra, foi o momento esperado para concretizar, aos 33 anos de idade, um projeto pessoal capaz de desafiar a determinação e resiliência até de alguém acostumado à disciplina militar. O enfermeiro, natural de Lisboa, desafiou-se a percorrer o Pacific Crest Trail, o mítico trilho que atravessa a costa oeste dos EUA e que ganhou novo fôlego mediático em 2014 à boleia do filme "Livre", com Reese Witherspoon. Colocámos-lhe algumas perguntas sobre as dificuldades, e recompensas, que espera encontrar nesta aventura, ligada a uma campanha de angariação para a Liga Portuguesa Contra o Cancro.

Quando pensamos no Pacific Crest Trail (PCT), é possível que algumas pessoas tenham em mente o filme "Livre", com Reese Witherspoon. Quais são as tuas referências ao pensar no PCT e como é que a ideia se materializou de o percorreres?

João Sintra: Há já pelo menos uns cinco anos que andava a maturar a ideia, mesmo sem saber se seria um dia possível ter a disponibilidade de percorrer o PCT. Queria que esta experiência, para além de todo o crescimento pessoal, tivesse por base um objetivo solidário e que me fizesse sentido, daí a parceria com a Liga Portuguesa Contra o Cancro. Digamos que tudo se conjugou para que neste corrente ano de 2024 isto se concretize, com o término do contrato com a Força Aérea Portuguesa após os meus seis anos de serviço, o aval positivo por parte da LPCC ao pedido de parceria, a minha disponibilidade física e mental para abraçar o desafio e, por último, a confirmação por parte da PCT Association que o meu pedido tinha sido aceite.

Claro que já tive oportunidade de ver o filme "Livre" com bastante atenção por razões óbvias, embora o meu filme preferido dentro do género seja o "Into The Wild". O Youtube é uma plataforma fantástica e algumas pessoas que completaram o PCT já fizeram o seu próprio documentário e respetiva partilha, tenho assistido a vários. A nível de referências, fascinam-me histórias de superação e, apesar de não almejar atividades técnicas de alta montanha, o alpinista João Garcia é um nome incontornável do outdoor nacional e internacional. Tenho também de referenciar o Fábio Inácio, um dos únicos portugueses que completou o PCT nuns surpreendentes 108 dias.

Podes dar-nos mais alguns dados sobre quando contas iniciar a caminhada e há quanto tempo estás a planeá-la?

Quando se fala de planeamento, as pessoas pensam imediatamente no caminho em si, sítios de descanso, reabastecimento de comida e água, quilometragem diária, preparação física... Resumindo, coisas mais práticas. Apesar de isto ser tudo válido, o planeamento é todo um processo, e umas coisas estão dependentes de outras. Este processo inicia-se com a recolha de informação acerca do percurso e com a decisão definitiva de me propor a fazê-lo. Segue-se o pedido de permissão de caminhada e respetiva confirmação por parte da PCT Association e o pedido de visto e obtenção do mesmo. Aí sim começa a fase de planeamento mais objetiva.

Conto voar para os EUA dia 20/21 de maio e está confirmado que a caminhada irá ser iniciada dia 27 de maio. Vou aproveitar esses poucos dias para recuperar bem do efeito jet lag e desfrutar um pouco da Califórnia com algumas pessoas da minha família. Embora seja um desejo antigo, conto no presente com meio ano de planeamento, mais coisa menos coisa.

Pacific Crest Trail
O traçado aproximado do Pacific Crest Trail e o brasão da aventura do João, intitulada "Unknown ETA Road" créditos: SAPO Viagens/Google Maps e João Sintra

Qual é o teu nível de experiência na caminhada de longa distância? Qual foi a maior caminhada que já fizeste até hoje?

Até agora conto com duas longas caminhadas:

  • Caminho de Santiago (Português), desde o Cercal até Santiago de Compostela, 125 Km;
  • West Highland Way + Subida à montanha Ben Nevis, 175 km.

Uma coisa que tenho aprendido ao longo deste processo de preparação, é que qualquer atividade outdoor é muito mais que números, e posso dizer de experiência própria que algumas das situações mais desconfortáveis surgiram em trilhos bem mais curtos.

Ao longo do tempo tenho tentado experienciar a máxima diversidade de terreno, ambiente e meteorologia. Tendo caminhado no Pico, Gerês, Serra de Gredos, Pirinéus, Dolomitas, El Teide, Escócia, Monte Agung, entre outros, sinto-me preparado para arriscar algo maior. Na minha opinião, mais que a quilometragem sinto que um dos principais desafios serão os longos troços de autonomia total no que toca a comida/bebida e pernoita, que é o aspeto em que tenho menos experiência. Contudo, agrada-me a ideia de ser "underdog" visto que o outdoor para mim é um hobbie e que o uso para sair da minha zona de conforto.

Como é que alguém se prepara para passar cinco meses sozinho a caminhar?

É uma pergunta pertinente e é a pergunta de muita gente. É importante referir que nos meses permitidos ao início da caminhada existem slots todos os dias com cerca de 50 pessoas de todo o mundo a começar o percurso. Estes números podem variar porque há sempre quem desmarque, quem tenha imprevistos de última hora que não lhes permita estar presentes ou simplesmente desistem. Isto tudo para dizer que, ao longo do percurso, principalmente no início, é normal cruzar-me com várias pessoas das mais diversas nacionalidades e é sempre bom conhecer outras culturas, outras formas de pensar, saber o que leva cada pessoa ao PCT, entre outras curiosidades.

Por não querer protelar demasiado esta aventura e em momento algum perder o foco daquilo que é o meu objetivo pessoal e solidário, é provável que tenha longos períodos sozinho. Se me permitem, queria deixar-vos com uma questão... Hoje em dia, com a vida a correr a mil à hora, quantas vezes do nosso quotidiano temos oportunidade de estarmos connosco próprios? "Solidão", normalmente conotada como algo negativo, é diferente de "Solitude", que para mim é sabermos estar connosco próprios, descobrirmos novos limites, gerir até alguns sentimentos a que não estamos habituados, criar novas estratégias de coping para resolvermos problemas, e por aí em diante. Na verdade é disto que se trata, quando estiver sozinho, não estou sozinho, estou comigo próprio!

Sentes que o teu treino militar vai ajudar-te?

A minha resposta é sim. Diria tanto o treino como a própria experiência profissional. Tendo estado ligado à busca e salvamento e transporte aeromédico, o treino é frequente, metódico e rigoroso, para que em situações reais estejamos aptos física e psicologicamente a responder às exigências de qualquer missão. Creio que a grande mais valia é o mindset, vivemos e experienciamos tantas coisas, do melhor ao pior, e criamos resiliência e um espírito altruísta.

No Instagram, li que estimas que esta caminhada pode levar quatro/cinco meses. É fácil abrires essa "janela de tempo" na tua vida profissional e pessoal?

Em relação à janela de tempo vai ser fácil a nível profissional, como já tinha referido. Atualmente, como já falta pouco tempo para iniciar esta aventura, estou 100% dedicado a este projeto e com disponibilidade total, visto que sou chefe de mim próprio (risos). A nível pessoal, toda a família e amigos dão-me todo o apoio necessário, embora tenham ficado um pouco receosos numa fase inicial e tiveram de certa forma de se habituar à ideia.

Para já, quais consideras que são os maiores desafios logísticos? Por exemplo, é fácil obter um visto turístico para os EUA com a duração desta caminhada?

A obtenção de visto é um processo fácil mas algo burocrático, pelo que é preciso alguma paciência. O visto em questão é o B2 e permite permanecer nos EUA por 6 meses consecutivos.

Creio que os maiores desafios logísticos vão estar diretamente relacionados com a meteorologia e o material que vou necessitar para determinadas etapas do caminho, e fazer chegar atempadamente esse mesmo material caso necessário, pois existem pontos de envio e recolha ao longo do caminho. Resumidamente, a gestão de material já depois de estar no PCT irá ser o maior desafio logístico, até porque o objetivo será caminhar o mais leve possível.

Referes numa publicação do Instagram que tens uma equipa a ajudar-te na preparação. Que tipo de preparação é que um projeto destes envolve e que apoios já tens (ou gostarias ainda de encontrar) para o levar até ao fim?

Formalmente, não tenho qualquer equipa. Tenho sim um conjunto de pessoas e entidades que poderão eventualmente apoiar ou patrocinar o projeto, mas as maiores ajudas que têm surgido é na sua divulgação.

A preparação, para além das autorizações e visto necessários, envolve também a seleção, aquisição e manuseamento do material que se vai utilizar, acompanhar a evolução meteorológica, estudar o caminho, preparar as redes sociais e tentar chegar ao máximo de pessoas possível.

Hoje em dia, como devem calcular, apoios monetários são cada vez mais complicados pelo que, neste momento, todo o esforço financeiro está a ser suportado somente por mim. Todo o tipo de apoio é bem-vindo, mas algumas ideias poderiam ser: o fornecimento de equipamento ou comida liofilizada, ajudas na aquisição dos voos, assim como a divulgação que continua a ser sempre necessária ou até mesmo algum outro tipo de suporte financeiro. Quero frisar que o grande foco é ajudar a Liga Portuguesa Contra o Cancro com a respetiva angariação de fundos e que em momento algum quero tirar qualquer tipo de benefício das contribuições fornecidas. Todos os apoios serão apenas em prol de completar o PCT com as melhores condições possíveis.

Como é que a caminhada está presente no teu quotidiano e, já agora, que trilho recomendarias a alguém que gostaria de fazer uma caminhada mais longa em Portugal?

Se calhar vão ficar surpreendidos com a resposta mas no meu quotidiano a caminhada está presente apenas a um nível muito curto, isto porque o meu trabalho de preparação física é dividido em trabalho de força no ginásio e cardiovascular normalmente com corridas de 5-10 quilómetros e pequenas caminhadas. A atividade física está presente praticamente todos os dias da minha vida.

O tipo de caminhada a escolher depende do que cada um pretende e se sente capaz fisicamente de realizar, mas em Portugal temos caminhos para todos os gostos. Um dos mais populares é o Caminho Português de Santiago que é tendencialmente mais fácil e adequado a qualquer idade. Temos ainda o Trilho dos Pescadores na Rota Vicentina com um lindo percurso costeiro de dificuldade fácil a moderada, que atrai também pessoas de todo o mundo. Para os mais aventureiros, apesar de ainda não a ter experimentado, mas por ter feito vários trilhos no Parque Natural da Peneda-Gerês, sugeria a Grande Rota do Gerês.

Por fim, qual vai ser a melhor forma de te acompanharmos nesta aventura?

As pessoas podem seguir-me nas páginas oficiais do projeto:

Aproveito para apelar a que estejam atentos à abertura de angariação de fundos para a Liga Portuguesa Contra o Cancro que deverá ser no corrente mês ou em maio antes da minha partida, e que permanecerá aberto enquanto durar toda esta aventura.