Bilhete-postal por Marta Spínola

O dia em Milão começou na estação de comboios, onde cheguei pouco depois das 10h (saí de Bergamo às 9h03, cada viagem custou 6 euros) e merecia um pouco mais de atenção, mas eu não queria perder tempo de manhã. Tinha a visita à "Última Ceia" marcada para as 11h30 e não queria distrair-me com nada antes disso. Já tinha a app dos transportes de Milão instalada no telefone, comprei o bilhete para um dia (7 euros) e segui para o metro.

Cheguei perto da Santa Maria delle Grazie, ainda não eram 11h, fascinada à primeira vista pelos prédios da Via Giovanni Boccaccio, já a pensar "como é que sempre me disseram que Milão não era bonita?!". Tomei um café no Caffè Ruffini - penso sempre que não estou à altura dos "Buongiorno!" que me saúdam de trás do balcão, chego-me perto para responder, os italianos respondem à distância, projetando a voz. Um dia aprenderei a ser assim.

Tratei de levantar o bilhete - só ficamos com comprovativo da reserva, o bilhete aguarda-nos lá -, disseram-me que 15 minutos antes podia levantar o audioguia, por isso fui até à igreja antes da visita. Cinco minutos antes da hora, uma guia começa a falar connosco, testamos o som e que maravilha: é a sua voz que ouvimos. Num grupo de 30/35 pessoas, fazendo uma visita, nada mais esperto que a voz de quem nos acompanha chegar tão democraticamente a cada um, sem termos de nos atropelar por um lugar mais perto da sua voz. Parecendo que não, a experiência é outra. Simpática, explicou-nos o que podíamos e não podíamos fazer lá dentro, explicou o percurso e controlos necessários na entrada, fez-nos o enquadramento histórico, e sossegou-nos dizendo que quando entrássemos na sala principal, se calaria uns segundos, para que cada um pudesse ter o seu próprio e único impacto. Gosto de guias com sensibilidade. Lá fomos.

Num primeiro claustro somos isolados - a porta por onde entrámos fecha-se e a seguinte só abre depois de essa primeira fechar e o grupo anterior sair. Ao som de uns bem relembrados "no video", "no flash, please", entrei no refeitório da igreja de Santa Maria delle Grazie e tive o meu momento. Ao virar-me para a direita, levantei os olhos para a parede e ali estava ela, a "Última Ceia" e seus azuis, por Da Vinci, a verdadeira, tantas vezes reproduzida por essas salas de jantar. Se me emocionei? Sim. Não sei bem explicar, cada pessoa terá as suas referências, eu vibro com Mestre Leonardo. A cena já foi vista tanta vez, mas chegar ali e ver o original tem definitivamente impacto.

Enquanto tirávamos fotografias, ouvíamos a guia explicar a luz, orientação e profundidade do affresco Vinciano. Era comum a Última Ceia ser representada em refeitórios de mosteiros, mas Leonardo da Vinci trouxe inovação começando logo por colocar todos os... hum... comensais de um só lado da mesa, criando uma barreira entre nós e a espiritualidade da cena. Além disso, os elementos na arquitetura são poucos, amplificando também ela a espiritualidade do momento, a janela é como uma auréola. Na cara e gestos de cada apóstolo um sentimento diferente, do medo à incredulidade, da indignação à compaixão. Judas segura os seus 30 dinheiros e Pedro uma faca.

O último restauro da obra de Leonardo da Vinci teve início em 1977 e terminou em 1999, quando finalmente foi aberto ao público. Discute-se se ainda se pode considerar como sendo o original, dadas as reparações de que foi alvo, grande parte passando por repintar por cima da parede, que miraculosamente (ha!) escapou a um bombardeamento em 1943.

Dali seguimos para loja e novo claustro, depois visita à igreja, mas os melhores 15 minutos foram mesmo aqueles em frente à parede do refeitório.

A Marta escreve "da vidinha" no seu blog Da vida de Pi, onde este texto foi originalmente publicado.