Texto e fotografias por Emília Matoso Sousa

Conhecer o país através da rede de percursos pedestres tem sido uma descoberta constante de cantos, recantos e encantos de um Portugal, porventura, menos conhecido, mas nem por isso menos rico. Continuando a nossa descoberta dos concelhos do distrito de Viseu, chegámos a Sátão que, ficámos a saber, é a Capital do Míscaro. Um cogumelo silvestre, comestível e muito apreciado. A volta ia ser longa, pelo que uma visita mais demorada à vila teria de ficar para outro dia. Hoje, era dia de visitar alguns dos exemplares mais emblemáticos do património religioso do concelho, representativos do estilo Barroco.

Confesso que visitar igrejas ou outros edifícios similares me provoca sempre uma pontinha de sentimentos contraditórios. De um lado, a ostentação de riqueza, do outro, a mensagem de simplicidade e a valorização do espiritual sobre o material... enfim, habituei-me a visitá-las pela sua vertente meramente estética, pois muitas delas escondem verdadeiras obras de arte. É impressionante a quantidade de igrejas que há nesta região, tantas vezes nos sítios mais remotos, desde as capelas mais simples, aos mais elaborados santuários. Símbolos da religiosidade e da forte fé que, nestes territórios, desde há muitos séculos se faz sentir.

Rota do Barroco
Igreja de Santa Maria créditos: Emília Matoso Sousa

Partimos da Igreja de Santa Maria, a matriz, de construção românica e dona de um semblante austero, que lhe é conferido pelo granito de que, no século XII, foi feita. A torre sineira central atenua, porém, o peso da pedra e dá-lhe um toque de alguma originalidade. Do outro lado da rua, há um edifício que prende a nossa atenção. Imponente, mas sóbrio e charmoso, e com um enorme brasão. O Solar dos Albuquerques, mandado construir entre os séculos XVII/XVIII por um Albuquerque, de seu nome Aleixo. O branco da sua fachada cede o protagonismo às decorações das cantarias, as quais permitem que o brasão ocupe o lugar de proa, bem lá no alto ao centro. Um senhor brasão em que não faltam castelos, quinas, flores de lis e uma coroa joanina. Já foi Paços do Concelho, mas hoje é Biblioteca Municipal e espaço de atividades culturais variadas. Pormenor delicioso, e a merecer uma menção honrosa, é a Loja do Cidadão instalada na antiga capela do solar. Haverá alguma mais bonita em Portugal?

Rota do Barroco
Biblioteca municipal de Sátão créditos: Emília Matoso Sousa
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Será esta a mais bonita Loja do Cidadão do país? créditos: Emília Matoso Sousa

Deixamos o miolo urbano e dirigimo-nos para sul. Atravessamos o rio Sátão e, em subida, atravessamos um extenso pinhal, onde predominam as coníferas, algumas de porte bem grande. A paisagem natural vai alternando com campos de cultivo numa convivência discreta e pacífica. Os extensos vinhedos, quais mantas verdes, marcam posição a lembrar-nos de que estamos na Região Demarcada dos Vinhos do Dão.

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À saída da vila de Sátão créditos: Emília Matoso Sousa
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Vinhas da Região Demarcada dos Vinhos do Dão créditos: Emília Matoso Sousa

Uma pérola do Barroco

A primeira paragem é em Abrunhosa, onde esperamos visitar o Santuário de Nª Srª da Esperança, uma pérola do Barroco, classificada como Imóvel de Interesse Público, mandado construir no século XVIII pelo cónego Luís Bandeira Galvão. A dominar a entrada na localidade, o seu posicionamento é ligeiramente altaneiro, sobre uma plataforma que recria um adro murado com acesso por uma escadaria central. Mas ‘parece’ que é no interior que está toda a sua riqueza. ‘Parece’, ‘dizem’, ‘consta’... porque, lamentavelmente, a igreja estava fechada e não pudemos visitar. Fiel guardiã de um património artístico trazido à luz pela mão e inspiração dos mais conceituados mestres, que na época não se olhava a gastos, o destaque vai para os tetos de madeira pintados em trompe l’oeil (Pascoal Parente), para os painéis de azulejos, assinados por Teotónio dos Santos, para o retábulo em talha dourada (José da Fonseca Ribeiro), e para o órgão de tubos (Francisco António Solha). Justifica, certamente, uma visita, portanto teremos de lá voltar numa breve oportunidade.

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Santuário de Nª Srª da Esperança, "uma pérola do Barroco", mas fechada neste dia créditos: Emília Matoso Sousa

Vale a pena ainda referir o sino deste templo, que tem um toque especial. Pelo menos, é o que o povo afirma e o que a lenda reza. A justificação é simples: durante a fundição, o Cónego Luís Bandeira Galvão atirou para a caldeira algumas moedas de ouro, conferindo uma sonoridade diferente e mais rica aos dois exemplares ainda hoje preservados.

Seguimos viagem, novamente por caminho agrícola rumo a Lajedo e Serviçaria, duas localidades que atravessamos devagar, sabendo que encontramos sempre pormenores dignos de interesse, como a belíssima capela encaixada entre casas numa pequena ruela. Seria uma capela particular? A quem terá pertencido?

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A pequena capela encaixada entre duas casas créditos: Emília Matoso Sousa
Rota do Barroco
créditos: Emília Matoso Sousa
Rota do Barroco
créditos: Emília Matoso Sousa

Lost in translation…

De vez em quando, acontece cruzarmo-nos com habitantes destas aldeias, os quais fazem questão de nos dirigir algumas palavras. Em Serviçaria, um senhor que estava à varanda saudou-nos e perguntou se “também não estávamos bem”. Após breve hesitação perante tão estranha pergunta, percebemos que o facto de nos deslocarmos com a ajuda de bastões levou o senhor a preocupar-se com o nosso estado de saúde. Estado com o qual ele, aliás, se identificava e se solidarizava, por estar a recuperar de uma queda na horta que o deixara uns tempos no hospital… Explicámos que estávamos bem, que os bastões eram para ajudar nos pisos menos seguros, mas ele preferiu manter a convicção inicial. Só assim se explica que nos tenha desejado “as melhoras” na despedida. Ou isso, ou pensou mesmo que não estávamos bem… mas da cabeça!

Avançamos até Rio de Moinhos, cuja torre da Igreja Matriz nos acompanha, ao longe, há alguns quilómetros. Nesta, conseguimos entrar. Uma igreja, em cujo interior se destaca a rica tribuna do altar-mor, bem como algumas características barrocas.

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Igreja matriz de Rio de Moinhos créditos: Emília Matoso Sousa
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Interior da igreja créditos: Emília Matoso Sousa

Temos agora pela frente alguns quilómetros através de pinhal intenso, o que irá saber bem, pois o calor já se faz sentir. A meio deste trajeto, começámos a ficar sem água e com sede e só em Mioma iríamos, eventualmente, encontrar uma fonte. Quando chegámos à localidade, apenas conseguimos bater a uma porta e pedir um copo do precioso líquido, pedido que foi imediatamente satisfeito com uma belíssima água acabada de trazer da nascente. A hospitalidade portuguesa nunca falha! Mioma também tem uma igreja, bastante imponente, por sinal, mas não a visitámos.

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créditos: Emília Matoso Sousa
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créditos: Emília Matoso Sousa
Emília Matoso Sousa
créditos: Emília Matoso Sousa
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Mioma e a sua igreja créditos: Emília Matoso Sousa

Seguimos para a povoação de Tojal, onde iríamos encontrar a igreja do antigo Mosteiro de Nª Srª de Oliva. O convento destinava-se a uma comunidade dominicana feminina quando foi fundado em 1633 por Feliciano de Oliva e Sousa. A igreja, de linhas maneiristas e ar austero, tem, ‘dizem’, uma decoração interior rica, com paredes forradas de painéis de azulejos policromados, entre outros pormenores. Com a extinção das ordens religiosas, o convento foi vendido a particulares e a igreja entregue à população local. Estava fechada, com grande pena nossa, pois o exterior era bastante promissor. Acontece frequentemente nestas localidades as igrejas estarem sob a responsabilidade de algum residente. Neste caso, a chave está com uma senhora que, por acaso, se encontrava no local a cuidar do jardim. Uma senhora com bastante idade e com problemas de mobilidade. É claro que quando, simpaticamente, se disponibilizou para ir a casa buscar a chave… nós tivemos de recusar. Mas relatou-nos histórias muito interessantes dos “bons tempos” em que, ainda criança, vivia numa das casas na propriedade (do antigo convento), uma vez que os pais trabalhavam lá. Acho que esta também merece uma visita… noutra volta, claro.

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O antigo Mosteiro de Nª Srª de Oliva, em Tojal créditos: Emília Matoso Sousa

A reta final do trajeto, que nos conduziria à ‘civilização’, faz-se através de uma mata de grande tranquilidade e beleza, com muitos carvalhos, castanheiros e sons de passarinhos a chilrear. E estamos novamente em Sátão, onde tínhamos ‘pré-sinalizado’ um local com ar de estar à altura de nos proporcionar um excelente final de tarde. E não nos enganámos!

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A etapa final da caminhada créditos: Emília Matoso Sousa
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De volta a Sátão créditos: Emília Matoso Sousa