Temos o carro enterrado num parque nacional no Uganda e precisamos de o tirar daqui rapidamente. Temos um encontro inadiável amanhã às 8h e estamos a 300 km. Passámos horas a tentar desatascar a Caracunda e a pensar que não chegaremos a tempo do encontro marcado.

Sim, estamos atascados no meio de uma reserva natural, numa zona com pouca rede, leões e apenas vestígios do que outrora chamaram estrada.

Pedimos socorro várias vezes, mas tardava em chegar…

Ao entardecer… finalmente! Depois de várias horas de espera, um ranger do parque socorreu-nos num monstro sobre rodas. Se a Caracunda for uma zebra, aquela besta era um elefante. Força bruta nem sempre resolve tudo, mas neste caso, era tudo o que precisávamos. O elefante mecânico puxou-nos dali para fora e pediu que o seguíssemos.

Encontro marcado com os gorilas na Floresta Impenetrável de Bwindi
Antes do encontro, o resgate da Caracunda créditos: De Chapa em Chapa
Caracunda
Depois de várias horas de espera, a Caracunda foi retirada da lama créditos: De Chapa em Chapa

Em modo perseguição fomos até uma das entradas do parque - entre hipopótamos e mais umas poças de lama onde corríamos o risco de ficar novamente atascados. Fintámos as ciladas com perícia e chegados ao destino, pedimos água para diminuir a lama, ou matope como nos habituamos a chamar-lhe em Moçambique, que já se começava a entranhar em nós e seguimos viagem.

Ainda arrastávamos connosco alguma da lama, mas pelo menos restabelecemos a dignidade necessária para seguir viagem.

O Queen Elisabeth National Park é incrível em paisagens e vida selvagem, mas o encontro marcado era demasiado importante para ser adiado.

Fazemo-nos à estrada e imediatamente passamos dois dos Grandes Lagos Africanos, seguidos de savana de perder de vista, plantações de chá e banana.

A noite ganha rapidamente terreno ao dia.

Curva contra curva.

Há montanha e cheira a chuva.

Ainda sentimos a lama em nós, mas a excitação é demasiado grande para desmoralizar. É preciso chegar.

Cada vez mais montanha, a curva contra curva ganha outro vigor, a estrada passa a terra, há pedras e vales, mas está demasiado escuro. Não conseguimos ver a paisagem. A noite vai alta e escura, mas sentimos o ambiente tropical e húmido, mais frio devido à altitude.

Não temos a certeza se iremos dar ao sítio certo, se a estrada estará transitável e se não teremos de voltar para trás e descobrir outra forma.

A cada curva a ansiedade e o cansaço aumentam.

Eventualmente… chegamos.

Chegamos a tempo de nos encantar ainda mais porque o caminho feito já de noite nos colocou por estradas de montanha com paisagens indecifráveis. Sabemos que estamos num ponto do mapa, mas não vemos nada. Para satisfazer a curiosidade é ainda preciso esperar.

No escuro, tiramos as ferramentas que estavam enlameadas, agora já secas e empedradas, de dentro de carro. A lama está por todo o lado!

O problema é que temos um encontro do dia seguinte. A limpeza terá de esperar, é um encontro demasiado importante para ser adiado.

O dia acordou com neblina cerrada, o que não nos deixou satisfazer as nossas curiosidades paisagísticas. O carro continua enlameado e o encontro marcado.

Não estamos cansados, estamos exaustos. Várias horas de luta na lama e com a lama foram extenuantes, mas temos de seguir…

Duvidamos do nosso corpo por estarmos exaustos, duvidamos do terreno porque não o vemos, duvidamos da meteorologia porque o céu está fechado, estamos numa zona tropical no meio da época chuvosa. Aparentemente, tudo para dar errado… mas o encontro está marcado.

Conduzimos 10 minutos até ao local designado e uma festa de acolhimento marca o compasso da chegada. Briefing e registo. Grupos e destinações.

O guia que nos "calha" diz que o nosso encontro é com uma das maiores famílias. Cabem nela grandes e pequenos: "alguns nasceram há pouco tempo, recebem visitas desde a nascença por isso estão bastante à vontade e são muito curiosos - se vos tocarem não toquem de volta, os mais crescidos podem não gostar".

Sustemos a respiração e o tempo para: ele disse… tocar?

Para este encontro, ainda precisamos de conduzir porque estão demasiado longe para caminhar. Nós e dois rangers armados (mas quem raio é que leva armas para um encontro, não é?) entramos dentro da Caracunda, enlameada do dia anterior e com ferramentas sujas em todo o lado...

Está perto a hora do encontro marcado.

É um encontro, mas talvez apenas nós saibamos.

Às personagens principais ninguém informou do horário, nem local, do número de visitas e, na verdade, nem do encontro.

Isso significa que teremos de os procurar.

A floresta está no nível máximo do encanto e para nós, que lá chegamos no tempo das chuvas, com o verde esperança que era também nossa - na expectativa do momento que fazia já o coração palpitar.

Estacionamos “à porta” da floresta densa, numa zona de cultivos que marca a fronteira da zona protegida. Há um rio que nesta altura carrega a terra barrenta e uma pequena vila do outro lado. Não, não há nada que impeça os protagonistas de Bwindi de sair da montanha - mas também nada que lhes interesse do lado de fora.

Floresta Impenetrável de Bwindi
Floresta Impenetrável de Bwindi créditos: De Chapa em Chapa

Caminhar na Floresta Impenetrável de Bwindi é sobre ansiar o encontro, mas não saber o que esperar. Encanta só de dizer o nome devagarinho. BU-IN-DI.

É Património da Humanidade da UNESCO desde 1994 porque estes 32 mil hectares de montanha no extremo sudoeste do Uganda têm um segredo desmedido: acredita-se que seja casa das maiores riquezas animais da África Oriental – entre aves da floresta, mamíferos (sete primatas, muitos deles em risco) e borboletas, não falando das mais de 100 espécies de fetos e 200 espécies de árvores.

Pensa-se que o povo Batwa habitasse estas regiões já há quase 5000, embora nunca se tenham encontrado sítios arqueológicos, em parte devido ao seu estilo de vida nómada e recoletor. Haviam evidências de desmatamento agrícola nesta região, sendo esse o vestígio mais antigo da existência de agricultura na África tropical.

Os povos bantu chegariam apenas 2000 anos depois.

Os Batwa (comumente chamados pigmeus pela sua estatura baixa) permanecem na região embora tenham sido obrigados a abandonar as zonas remotas da floresta. Existiu um compromisso para que o seu modo de vida fosse respeitado e apoiado e ainda que sejam parte dos projetos de conservação e turismo – como em tantos outros sítios – esse equilíbrio ainda não é uma realidade para os Batwa que são agora um povo sem terra e sem sustento, visto viverem tradicionalmente da caça e recolha nas suas de floresta hoje protegidas e outrora destruídas por povos vizinhos.

Floresta Impenetrável de Bwindi
Floresta Impenetrável de Bwindi créditos: De Chapa em Chapa

Pois, pois… o Encontro! Atravessámos o rio e começámos a caminhar, acompanhados por um  guia e dois rangers, entre várias colinas, num sobe e desce frenético como as florestas tropicais montanhosas gostam de proporcionar. De manhã cedo outros dois rangers já se encaminharam para chegar mais cedo ao encontro e nos dizerem onde seria. Seguem os ninhos do dia anterior - os protagonistas da montanha não andam muitos quilómetros por dia e fazem sempre o seu "ninho" num local diferente.

Um par de horas mais tarde telefonam ao guia: encontraram a família.

O coração palpita e a mente fervilha.

Redirecionámos o passo na sua direção, mas eles continuaram em movimento o que nos fez estar sempre atrasados para o encontro. O André escorrega e uma planta seca enfiasse no seu nariz ao cair – quem nunca pensou em desatar a sangrar numa floresta dita impenetrável?

Mais duas horas e há um segundo de vislumbre de uma massa peluda no cimo da árvore que decide fazer xixi no segundo seguinte.

Os rangers pedem que avancemos atrás deles, uns metros adiante. Um chama a Joana e diz-lhe que passe para trás da árvore – não sabia o que iria encontrar. Neste momento nada nos separa - há um ranger atrás, uma árvore, alguns (poucos metros) e uma massa maior e mais peluda está no chão.

Floresta Impenetrável de Bwindi
Gorila com as costas prateadas créditos: De Chapa em Chapa

É o Silverback (costas prateadas)! O chefe desta que é uma das maiores famílias de gorilas da montanha que habitam a floresta de Bwindi. Ultrapassou já os 30 anos – é ai que o pelo das suas costas começa a fica prateado, sinal da sua virilidade, e está… aqui, a poucos metros de nós. Em menos de nada trocamos olhares arrepiantes com uma montanha de músculos com cerca de 250 kg e 2m… Assustador? Talvez. Emocionante? Sem dúvida!

A realidade é bem diferente de uma aparência bruta e musculada. É uma família divertida e com interações incrivelmente “humanas”. Parecem movidos a empatia.

Em todo o mundo, existem apenas duas populações de gorilas da montanha.

Uma, habita aqui, na Floresta Impenetrável de Bwindi, no Uganda. A outra habita os Montes Virunga - zona de reserva correspondente à fronteira tripartida entre o Uganda (Parque Nacional Mgahinga), Ruanda (Parque Nacional dos Vulcões) e a Republica Democrática do Congo (Parque Nacional do Virunga). Este ultimo, infelizmente, tomado pelos rebeldes, impedindo os rangers do parque de continuarem o seu trabalho (não só o turismo está impedido, como também as famílias de gorilas estão em risco naquela região).

Encontro com gorilas da montanha no Uganda
Encontro com gorilas da montanha no Uganda créditos: De Chapa em Chapa

Galhos começam a partir e folhas a abanar. Aos poucos, uma família saciada começa a descer a terra firme e nós?

Esperamos cá em baixo.

Uma primeira gorila desce e senta-se encostada a essa mesma árvore. Depois outra, que desce animada pela companhia do seu mais recente filhote.

Em 1998, eram um total de 620 gorilas na montanha (infelizmente, total quer mesmo dizer total). Atualmente, são 1.063. Destes, um terço habita em Bwindi.

Encontro com gorilas da montanha no Uganda
Encontro com gorilas da montanha no Uganda créditos: De Chapa em Chapa

Os números estão a aumentar mas o assunto é demasiado sério. Os gorilas da montanha sofreram demasiadas ameaças - caça furtiva, desmatamento dos seus habitats, transmissão de doenças por seres humanos e conflitos civis. Hoje trabalhos de preservação e conservação, tentativa de trabalho com as comunidades locais e turismo pensado nesse sentido têm permitido que se protejam os adultos e se permitam crescer as crias, garantindo a continuidade e segurança das famílias.

Existirem crias foi o que nos fez escolher esta secção da montanha quando comprámos o permit em Kampala, mas não sabíamos o que isso significaria até realmente as encontrar. Nunca ninguém saberá.

Começamos a sentar-nos porque eles começam a encontrar também o seu espaço familiar.

De repente, no meio de sítio nenhum, nesta dita floresta impenetrável, há uma grande sala de estar - chegámos todos ao encontro.

Parte da família deita-se aconchegada, próxima das grandes mãos do grande Silverback. Um bebé mama e, quando se cansa, dá cambalhotas entre os restantes gorilas até encontrar um galho para mordiscar. Trocam olhares e carícias. Coçam a cabeça vezes sem conta como quem pensa na razão inexplicável de haverem seres a assistir à sua vida na sua própria sala de estar.

Encontro com gorilas no Uganda
Encontro com gorilas no Uganda créditos: De Chapa em Chapa

Não, não vale a pena explicar que tínhamos encontro marcado!

A esta hora estamos já sentados nas raízes das árvores próximas e somos ali só mais uns. Trocam olhares entre eles e também connosco. E, se no princípio do encontro isso nos levava a suster a respiração, a esta hora já só nos fazia sentir pequeninos e pensar no quão a Humanidade falha cada vez que somos responsáveis por não proteger esta riqueza.

Há um momento de despedida marcado porque um encontro demasiado prolongado coloca também em risco a normalidade das suas vidas.

Foi esse o combinado: a caminhada pode ser interminável, o encontro durará sempre só uma hora.

Esta família de gorilas como algumas outras foram habituadas aos humanos através de permanência prolongada das equipas do parque – sem interferência direta nas suas dinâmicas normais, mas para que os gorilas se habituassem à presença de humanos e não os vissem com uma ameaça. Habituar não quer dizer interferir, tocar, aproximar, quer apenas dizer poder estar.

Encontro com gorilas da montanha no Uganda
Encontro com gorilas da montanha no Uganda créditos: De Chapa em Chapa

Podemos questionar eticamente o porque de habituar famílias de gorilas à presença humana uma vez que ninguém sabe as alterações no seu comportamento a longo prazo, mas a verdade é que as receitas do turismo são grande parte da percentagem que permite que toda a conservação continue a funcionar e essa beneficia todos os gorilas, habituados ou não a ter homens por perto. A escolha foi de não habituar todas as famílias de gorilas – somos demasiado imprevisíveis e isso sim poderia ser o fim desta espécie como foi de tantas outras.

Podemos jurar que no momento em que começamos a levantar-nos e caminhar para virar costas, os olhares se fixaram em nós - como quem percebe e se despede. Essa perceção nunca saberemos qual é, mas a partilha de 98.4% de genes mostra-nos que temos muito mais em comum, do que aquilo que pensaríamos num primeiro olhar.

Emociona, sem dúvida, o adeus naquela sala de estar e sim, de repente, parece que todos nós fomos felizes neste encontro.

Há vida por aí, mesmo a que parece ser demasiado longínqua, por vezes, fica rapidamente na tua sala de estar.

Saibamos viver a nossa com a garantia de cada vez menos a incomodar.

Não sabemos até quando irá aguentar.

A Joana e o André estão a fazer uma viagem por África a bordo da Caracunda, nome da Toyota Hiace transformada em autocaravana que partiu de Moçambique com destino a Portugal. Podem seguir esta aventura através do Instagram De Chapa em Chapa.