Texto: Carla Lourenço / Fotografia: João Pedro Augusto

A manhã acordou preguiçosa, a bocejar fundo; um bocejo que vinha do interior da terra. Das suas muitas bocas salivantes saíam bafos quentes, com corpos de nuvens, que se dissipavam na atmosfera fria. Os cabelos loiros despenteados sacudiam-se devagarinho ao vento, e o sol começava a aquecer-lhe a pele escura.

À porta do abrigo, o Luís ia carregando o jipe vestido de pó para a última viagem por terras bolivianas daquelas seis mochilas que já correram mundo. Na dança das cadeiras que se seguiu quando nos sentámos, ofereci o lugar de co-piloto ao João. Esqueci-me muitas vezes do deserto enquanto o observava nas suas entusiásticas conversas com o nosso guia. O João sorri com o corpo todo e abraça as pessoas sem lhes tocar - é um dom que ele tem. Envolve-as em perguntas e respostas e vai cozinhando uma estória em lume brando, devagarinho, com todos os ingredientes que encontra pelo caminho. Novamente o Dakar e o sal e as motas e as paisagens e o “como é que foi nessa altura?”.

O Deserto Salvador Dali
créditos: Carla Lourenço
O Deserto Salvador Dali
créditos: João Pedro Augusto
Altiplano
créditos: João Pedro Augusto

Quando demos por isso, estávamos a derrapar junto ao Deserto Salvador Dali. Contava-nos o Luís - certo de que não era só um mito - que o pintor sonhou com um deserto extravagante que mais tarde pintou em tela, coincidindo o surrealismo com a realidade boliviana sem nunca antes ter pisado aquele terreno. Certo é que a mistura de cores e texturas, e a excentricidade das formas disformes das rochas que a erosão trincou pela base são dignas de um imaginário que só pode ser sonhado. Também ali o tempo derreteu e os minutos deixavam-se cair como grãos de areia numa ampulheta de vidro.

As paragens neste altiplano sul-americano sucediam-se junto a grandes espelhos de água que refletiam os vulcões ao longe. Parámos na Lagoa Verde e na Lagoa Branca. Deixei-me cair para uma rocha, com o caderno enrolado nas mãos. Atirei os cabelos para trás, ajeitei o gorro que comprara em Uyuni e pus-me a desenhar. Não é que o saiba fazer, esses dotes artísticos ficaram certamente presos à Carla do 7º ano que era obrigada a desenhar pentágonos nas aulas de educação visual, mas não tinha o tempo necessário para escrever uma monografia sobre a montanha que posava à minha frente. Das medidas que lhe tirei, só consegui concretizar um contorno rude. Ainda para mais, ia-me crescendo uma vista enevoada nos olhos que eu limpava com a manga cinzenta. Tirámos a última fotografia de grupo com largos sorrisos, num cenário idílico, com flamingos que se alimentavam nas águas rasas da lagoa. Pouco depois os nossos corpos despediam-se na fronteira com o Chile e, ao lançar um último olhar para trás, agradeci mais uma vez à Pachamama.

O Deserto Salvador Dali
créditos: João Pedro Augusto
Altiplano
créditos: João Pedro Augusto

*

Descemos da carrinha numa rua perpendicular à famosa Calle Caracoles. Descemos, também, de altitude e a temperatura acompanhou inversamente a tendência. Estava um calor abrasador. Para San Pedro de Atacama estávamos demasiado vestidos. O sol queimava as pernas despidas e os ombros a descoberto daqueles com quem nos cruzávamos. Não fossem os quase 200 km que nos separavam do mar, teria imaginado uma procissão religiosamente organizada até à praia.

A Calle Caracoles é o ponto de encontro de todas as pessoas, de todas as atividades, de todos os momentos. Acimentado numa terra batida de tez clara, o chão confunde-se com as casas que o ladeiam à esquerda e à direita. Os restaurantes intercalam-se com empresas de turismo de natureza. Depois um bar, uma gelataria, um músico que toca sozinho, uma banca de minerais, uma oficina de bicicletas. Todas as lojas parecem, à primeira vista, pequenas, mas muitas escondem pátio internos a céu aberto. Pequenas ruelas projetam-se adjacentes à calle mãe e escondem outras tantas oficinas, cafés, parques. Em poucos minutos já nós tínhamos deixado o centro turístico e encontrado o nosso hostel numa rua inclinada, depois de um parque infantil que conhecemos sempre vazio. O hostel, familiar, incluía duas cadelas responsáveis pela receção - uma delas cega, que deveríamos chamar suavemente para que não nos confundisse com intrusos. Sentimo-nos em casa ao abrir a porta do quarto e, como dois irmãos, discutimos pela posse da cama maior. Recorrendo a argumentos inquestionáveis, convenci o João a abdicar da cama mais pequena em meu favor. Desta vez, era dele a cama maior - ou assim julguei.

Lá fora o calor abrandara, o ar estava mais respirável e nós não resistimos. Calçámos as sapatilhas, enchemos o peito de ar e partimos em corrida. Os pés cansados levantavam a poeira à força. Os joelhos fletiam teimosos. Os braços balançavam lateralmente, à pressa. Sem mapa, acrescentámos quilómetros aos corpos cheios de adrenalina e vimos o dia encerrar-se num pôr do sol amarelo desértico. Senti a viagem a caminhar para o fim, como aquela tarde. Restavam-nos, ainda, alguns dias, mas as saudades entranhavam-se já pele adentro e percorriam-me as veias levando tudo ao coração. Depois de jantarmos num pequeno restaurante que separava vegetarianos de omnívoros, caminhámos de braço dado pela rua, planeando o dia seguinte. Na Caracoles que adormecia aos poucos, um bar deixava escapar a música porta fora. A uns passos daí, numa pista improvisada à luz das estrelas, peguei na mão do João e levei-o a dançar.

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