Texto: Carla Lourenço / Fotografia: João Pedro Augusto

PRIMEIRA PARAGEM: PERU

Lima

Lima recebeu-nos enevoada, ainda adormecida, esfregando os olhos com as costas da mão imaginária, enquanto bocejava languidamente ao som das buzinas que despertavam a cidade. Chegámos nós, com as horas trocadas nos aviões. As mochilas impecavelmente organizadas deixavam escapar o cansaço dos bolsos - chegaram sem mazelas, pelo tapete rolante, contorcido, número 6. Os nossos cabelos despenteados, alvoraçados das correrias, pediam água como quem quer matar a sede. Ao menos não envergávamos chapéus de cowboy, como os viajantes do Texas ao nosso lado, que ostentavam um macacão de ganga por cima da camisa aos quadrados – assim é difícil passar-se despercebido.

Entrámos cidade adentro, zigzagueando ruas, olhando letreiros, imaginando histórias. Uma extensa avenida deixa a confusão dos subúrbios e lança-se ao oceano em direcção a Miraflores. “Despacio”, lê-se no alcatrão. Saltámos do táxi para a parede colorida do hostel, contrastante com o céu cinzento. Tínhamos chegado ao ponto de não retorno: onde os sonhos passam do fictício para o real. Aqui estávamos nós, prontos para a América do Sul, a borbulhar por dentro de ansiedade, mas tranquilizados pelo azul-Pacífico.

A nossa vida em Lima foi curta para o que a cidade oferece. Com os olhos postos em todos os movimentos, absorvemos a atmosfera da vida local. Os autocarros bamboleavam-se rua acima, rua abaixo. As pessoas entravam e saíam. Ajeitavam-se casacos, atendiam-se chamadas, planeava-se o almuerzo. Parámos onde um grupo de señoritas coordenadamente se exercitava. Fomos em peregrinação ao mar sem lá chegar. Aqui e ali os miradouros surpreendiam pelas vistas que ofereciam. Do cimo da arriba - invariavelmente recordação de casa - vimos urubus-pretos a cruzar o céu. Vimos a costa que se estende para lá do que os nossos olhos conseguiam alcançar, mas limitado ao que o nevoeiro permitia nesse dia. Conhecemos o Parque do Amor, onde promessas eternas se traduzem em cadeados aprisionados, juntos uns aos outros, repetidos, numa barreira de metal que protege os transeuntes de caírem no abismo - excepto no do amor.

Lima
Lima créditos: João Pedro Augusto

No outro lado da cidade fomos encontrar o centro histórico. Monumentalmente diverso, cautelosamente cuidado, envolto em poeiras, as pessoas como formigas em carreiros pré-definidos. Os edifícios espreguiçavam-se em direcção ao céu, no fim de tarde vagaroso. As portas majestosas, com influências europeias, talhadas em detalhes, faziam lembrar os filmes de há varias décadas. O filtro desta película, se o houvesse, seria sépia ou terracota ou uma cor de tijolo velha, como as histórias que se contavam nas esquinas. Com pouco mais de uma hora antes da noite chegar para nos obrigar a recolher qual conto de fadas, explorámos os becos e as ruelas, e os cantos e as vielas. Ouvimos as músicas por quem as tocava rente ao chão com instrumentos experientes. Rodámos na praça, pelos passeios, o pescoço teimosamente a cair para trás de espanto enquanto os dentes mordiam os lábios devagarinho. Fugimos da fila para comprar churros, e fomos encontrar o nosso numa pequena loja abandonada. A 3 soles. Estávamos apaixonados por aquelas luzes, por aquelas sombras, por aquelas pessoas. E, tal como um amor de verão, tudo chegou ao fim.

Lima
Lima créditos: João Pedro Augusto
Lima
Lima créditos: João Pedro Augusto

Salida: Lima > llegada: Cusco

Despedimo-nos de Lima olhando pelas janelas do autocarro. Saudosos do que não vivemos na cidade, ansiosos pelo que estava para vir. Connosco viajavam muitas outras vidas. As malas misturavam-se com os cheiros e as palavras numa língua que não é nossa. Os quilómetros foram passando paralelamente aos minutos, de mãos dadas, olhos nos olhos. Lá fora, o cenário alternava entre lentos pestanejos. Ora os subúrbios do que poderia ser uma cidade plantada à beira da estrada, ora uma visão desértica torrada, polvilhada a rochas e areia avermelhadas. O sol pôs-se no lado direito do autocarro, junto ao mar que amei à primeira vista.

A noite foi chegando entre os solavancos da via Panamericana, conhecida por cruzar o continente de norte a sul, ao longo de 14 países. A meu lado, o João dormitava enrolado no casaco. Mal se mexia, mal se dava por ele. Assim foi quase todo o caminho. Eu estava desperta. De pernas cruzadas, colei a testa ao janelão enquanto olhava pela primeira vez o céu estrelado do Hemisfério Sul. A escuridão insuficiente mostrava-me uma ou outra estrela e eu deixei-me recostar no banco. "No Atacama terei tempo para ver todas as estrelas que eu quiser"- pensei. Acabei por adormecer, a cabeça deslizando de um lado para o outro à medida que somávamos curvas até Cusco. O dia nasceu devagarinho, com o sol a espreitar pelas montanhas. As sombras antes negras, davam lugar a uma palete de verdes e amarelos que permitiam distinguir toda a decoração selvagem montanhosa. Ao olhar para o lado vejo o João desperto. Afago-lhe o cabelo e dou-lhe as boas notícias: "bom dia, estamos quase a chegar".