Na verdade, conheci-o de forma fortuita há muitos anos, em meio de uma tempestade na minha vida. Algo interessante de pensar quando se conta que terá sido graças a uma tormenta que os navegadores portugueses foram desviados no caminho em direção à costa de África, e andando à deriva pelo mar, avistaram uma pequena ilha que lhes terá servido de porto seguro, acabando por acolher a frágil tripulação comandada por João Gonçalves Zarco. Decorridos muitos anos desde a minha descoberta, e a jeito de comemoração, finalmente decidimos abraçar este local tão belo como abençoado.

Ali chegados, enveredamos pela descoberta ao ritmo e desejo das paixões do X, ao que a água salgada e os trilhos de terra batida assumiram especial relevo naqueles dias. Após uma breve incursão na Vila Baleira, onde voltaríamos bastantes vezes, começamos por visitar a casa-museu do navegador Cristóvão Colombo, na qual este terá habitado com Filipa de Moniz, filha de Bartolomeu Perestrelo, primeiro Capitão Donatário do Porto Santo. Com salas dedicadas à Expansão Portuguesa, bem como a elementos relacionados com a importância da coroa espanhola na expansão mundial e financiadora da expedição de Cristóvão Colombo em 1492, são também dedicados espaços ao império colonial holandês, patente na exposição de parte do espólio do galeão da Companhia das Índias Holandesa “Slot ter Hooge”, afundado em 1724, a norte da ilha do Porto Santo. Mas antes de seguir caminho, o Viajante X, peculiar apreciador de arte sacra, empurrou-nos até à bonita Igreja Matriz, muito alterada e reestruturada ao longo dos séculos, ou não tivesse sido destruída quase por inteiro, em 1566, num ataque de corsários franceses. Hoje, apresenta uma fachada modesta, com uma torre sineira e um amplo interior coberto por teto de madeira, ainda com elementos do século XV.

Feito este desvio e pousadas as bagagens, corremos até ao extenso e dourado areal para mergulharmos no infinito salgado e sonharmos com o mapa (quase infinito) de intenções e vontades para aquela semana… Assim ao lusco-fusco decidimos que, na manhã seguinte, começaríamos por ir em direção à Fonte da Areia, na costa norte da ilha, onde existia a crença que bebendo a sua água recupera-se a saúde do corpo e da alma, além de ganhar longevidade, para depois seguir até ao Porto das Salemas. Ainda que o trilho até lá seja apenas acessível a pé, bastante íngreme em algumas partes e com muita pedra solta, exigindo cautela, vale a pena cada fôlego até encontrarmos estas belas piscinas naturais… Esta pequena, encantadora e muito bem recôndita enseada, visitável apenas na maré baixa, transporta-nos para bem longe do mundo!

Porto Santo: longe das praias, no Porto das Salemas, celebra-se a paixão da natureza pela pureza
créditos: Viajário Ilustrado

“li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão?

quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão: se tinha paixão pelas coisas gerais, água,
música, pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos, pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória, paixão pela paixão, tinha?

e então indago de mim se eu próprio tenho paixão, se posso morrer gregamente,
que paixão?”

Herberto Hélder, A faca não corta o fogo