A herança judaica na História de Portugal é algo inegável. Contudo, mesmo após a extinção da Inquisição em 1821, a aceitação dessa herança não foi imediata. Ao longo do século XX, apesar de um clima legal de liberdade religiosa, os cripto-judeus ainda preferiam ficar na sombra, não assumindo a sua identidade com medo dos olhares sociais.

Um pouco por todo o país, a presença judaica mantém-se viva na arquitetura, na toponímia e na própria linguagem e costumes. A Beira Interior é o epicentro do judaísmo em Portugal, uma vez que no final da Idade Média, quando os judeus foram expulsos de Espanha, a região da Beira Interior recebeu um grande número de novos habitantes, que se fixaram em locais como Castelo Rodrigo, Belmonte ou Trancoso, antes do judaísmo ser, igualmente, proibido em Portugal em 1506.

Aldeia Histórica de Trancoso

A vila medieval de Trancoso é fortemente marcada pela ancestral presença judaica, que deixou marcas no urbanismo e arquitetura. Caminhando pelas ruas estreitas é possível perceber que muitas das casas têm duas portas: a mais larga dava acesso ao espaço onde era feito o comércio enquanto a mais estreita dava acesso à residência da família. Na Casa do Gato Preto, um edifício medieval, é possível ver na fachada vários altos-relevos interpretados como judaicos, como as portas de Jerusalém, um pelicano, quatro semblantes, a figura de um judeu a entrar na sinagoga e o leão de Judá.

Fachada da casa do Gato Preto
1- Portas de Jerusalém 2- A figura de um judeu a entrar na sinagoga 3- Leão de Jubá créditos: Susana Sousa Ribeiro

No coração da antiga judiaria está o Centro de Interpretação da Cultura Judaica Isaac Cardoso. Foi fundado em 2012, e é da autoria do arquiteto Gonçalo Byrne. Destaca-se a moderna Sinagoga Beit Mayim Hayim (que em português significa Poço das Águas Vivas). É um espaço de cultura e debate, que dá a conhecer o legado ancestral das comunidades judaicas da Beira.

No centro é possível compreender a relação entre os cristãos e os judeus e as lendas que circulavam. Vistos como "seres diferentes", dizia-se que tinham chifres, pés de cabra ou um rabo. O centro tem também um memorial das vítimas da Inquisição com os 515 nomes dos presos de Trancoso.

Aldeia Histórica de Castelo Rodrigo

A cerca de 60 quilómetros de Trancoso, podemos encontrar a Aldeia Histórica de Castelo Rodrigo, emoldurada por amendoeiras em flor que enchem o ar com um aroma agradável. Através de uma visita encenada é possível ficar a conhecer mais sobre a história do lugar. Apesar da freguesia ser relativamente pequena, é possível identificar uma judiaria. No centro estaria uma sinagoga, que foi transformada na cisterna que hoje é possível observar. Com cerca de 13 metros de profundidade, possui duas entradas – uma de estilo gótico e outra, com um arco de estilo árabe. A destruição da sinagoga terá ocorrido aquando da expulsão dos judeus, ordenada por D. Manuel I, tendo sido posteriormente reaproveitada como cisterna/reservatório de água.

Ao longe é possível ver a Serra da Marofa que, segundo a lenda, deve o seu nome ao amor entre um cristão e a filha de um judeu.

 Castelo Rodrigo
Visita encenada em Castelo Rodrigo créditos: Susana Sousa Ribeiro

Lenda da Serra da Marofa

Zacuto, um rico judeu que viajava com a sua única filha chamada Ofa, decidiu comprar o alto da serra de Castelo Rodrigo para a construir a sua habitação. O filho do fidalgo das Cinco Vilas, Luís, quis conhecer Ofa e acabou por se apaixonar. Inicialmente, esta paixão trouxe grande dor aos pais do jovem, uma vez que estavam separados pela religião.

No entanto, D. Manuel I ordenou a expulsão de todos os judeus que não se convertessem ao cristianismo e Zacuto e Ofa tornam-se cristãos-novos, o que permitiu a Luís obter dos pais autorização para frequentar a casa de Zacuto e pedir a mão de Ofa em casamento. Luís,  sempre que ia ao alto da encosta, dizia à mãe e amigos: "Vou amar Ofa". Todos já sabiam, quando Luís passava pela povoação em direcção à encosta que ele ia "amar Ofa". Diz a tradição que a serra passou a ser conhecida por serra da Marofa na inocente imitação da resposta de Luís.

Não podemos sair Castelo Rodrigo sem  visitar as Ruínas do Palácio Cristóvão de Moura - residência oficial de Cristóvão de Moura que apoiava Filipe II de Espanha durante a crise dinástica. Quando foi recuperada a independência nacional o palácio foi incendiado pela população, estando atualmente em ruínas. No entanto, o pôr do sol emoldurando pelas ruínas é um espetáculo digno de ser apreciado.

As amêndoas  são um produto a não perder numa passagem por Castelo Rodrigo. Na loja Sabores do Castelo é possível encontrar várias opções, desde as caramelizadas, cobertas de canela ou café até às amêndoas de caril ou com ervas aromáticas. São feitas com amor por André Carnet que, também por amor, trocou a França por Castelo Rodrigo nos anos 80.

Guarda

Dentro das muralhas da cidade da Guarda, existe ainda hoje o antigo bairro judeu, perto da Porta D’ El Rei. A comunidade judaica da Guarda foi, durante muito tempo uma das mais importantes no país. O centro histórico da cidade ainda conserva traços do antigo bairro judeu, como as casas com as duas portas e ainda subsistem marcas de cruzes nas portas - geralmente no lado direito. As cruzes eram um símbolo da cristianização das casas , mas também o testemunho do "mezuzah" que todo judeu deve tocar com a mão direita antes de entrar em casa.

Aldeia Histórica de Belmonte

Belmonte é o lugar da mais forte concentração judaica contemporânea da região. Não apenas devido à herança deixada, mas porque tem uma comunidade judaica ativa, com celebrações religiosas que juntam, muitas vezes, costumes cristãos com costumes judaicos. Quando D. Manuel ordenou a expulsão dos judeus, muitos abandonaram o país, outros converteram-se ao cristianismo e um pequeno grupo isolou-se do mundo exterior, cortando o contacto com o resto do país e seguindo suas tradições à risca. Foi o que aconteceu com a comunidade de judaica em Belmonte, que passou as suas tradições de geração em geração, mantendo viva e em segredo a herança judaica em Portugal, mesmo quando o judaísmo era  proibido.

Museu Judaico de Belmonte
Museu Judaico de Belmonte Susana Sousa Ribeiro

Em Belmonte é possível visitar o primeiro museu judaico em Portugal, que retrata a história dos judeus no nosso país, a integração na sociedade portuguesa e o seu valioso contributo ao nível da cultura, da arte, da literatura e do comércio.

Sabugal

Cidade fronteiriça com Espanha, o Sabugal tem presença judaica desde o século XIII. Dezenas de marcas judaico/religiosas e cruciformes persistem no centro histórico, próximo ao castelo. Pela proximidade à fronteira, a região recebeu comunidades judaicas expulsas do vizinho reino de Castela em 1492. Após o decreto de D. Manuel I, em 1496, as comunidades optaram por sair do país ou converter-se ao cristianismo. Os que ficaram mantiveram as práticas em segredo e, por isso, entre 1544 e 1795, mais de uma centena de "cristãos-novos" caíram nas malhas da Inquisição, no Sabugal.

Para conhecer mais sobre a herança judaica na região, visite a Casa da Memória Judaica da Raia Sabugalense onde é possível observar algumas peças referentes ao passado da região, assim como alguns conteúdos gráficos que retratam a presença das comunidades judaicas na cidade. É ainda possível encontrar um armário de parede, em pedra, associado aos cultos judaicos e usados para esconder o ritual das candeias do Shabat.

O Castelo do Sabugal, também apelidado de Castelo das Cinco Quinas, é um local a não perder. Reza a lenda que foi no largo deste castelo que se deu o famoso milagre das rosas tendo como protagonistas a Rainha Santa Isabel e o rei D. Dinis, no qual o pão que a rainha levava no regaço se transformou em rosas.

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Onde ficar

Se pretende partir à descoberta da herança judaica na Beira, prepare-se para muitas horas de viagem entre os vários locais. Ficar alojado num local central, como na cidade da Guarda é uma boa opção para maximizar o tempo. O Hotel Lusitânia fica a apenas a 10 minutos de carro do centro histórico da cidade da Guarda, no coração da Beira Interior e é uma boa opção para quem pretende unir tradição com modernidade.

Publicado originalmente a 1 de setembro de 2019.