Bilhete-postal por Paulo Tavares

O sol na nossa terra derrete tudo num lânguido, seco e desumano dia de verão. Lembro-me bem de andar pelas ruas do meu bairro-vida e sentir alcatrão em barro pronto a moldar por baixo dos chinelos de enfiar no dedo, como se nos preparasse o chão para nos engolir lentamente, ou não estivéssemos nós no Alentejo.

O alentejano nasceu com isto mas não para isto. A nossa humanidade torna-se um pouco mais efémera a cada raio que não dá tréguas. A sombra é refúgio, por mais ínfima que seja. Plátano imponente, sobreiro jovem, muro desconchavado, todo e qualquer sítio onde se possa respirar fundo, piscar um olho, meter uma mão por cima da testa e arrepiar caminho até ao próximo apeadeiro solar.

O alentejano tem um lenço de bolso, que começou por ser passado em casa para depois ser salvador de buços e nucas empestados de suor de trabalho. A boina sai e o enxugamento do líquido acre e salgado inicia-se sem pressas, pois o mais certo é fazer falta dali a poucos minutos.

O calor é inexorável, não dá tréguas. Nas horas em que se sente em maior força, regula um recolher obrigatório para pousio munido de água ou groselha fresca, gaspacho com pedras de gelo, tomate e vinagre. O calor suporta-se em silêncio, imóvel, tornando a maior região do país no mais completo museu vivo do mundo durante algumas horas todos os dias.

À medida que o dia se vai fechando e as longas noites de fim de agosto irradiam luas meio escondidas por areias de outros continentes, o Alentejo vai ganhando vida, pouco a pouco, saindo cada um dos seus habitantes dos seus casulos térmicos. Mas continua quente, dirão os mais incautos. Sim, dias de quarenta e muitos graus ninguém aguenta. Mas noites de trinta promovem a socialização dos vizinhos confinados que falam do nada que é tudo nas suas vidas, incentivam às gargalhadas de voz cheia nas esplanadas de bairro, entre tilintares de copos e chávenas, agrupam jovens em caminhadas intermináveis pelas mesmas ruas, irradiando vida pelos prédios de luzes apagadas e janelas abertas, de toalhas molhadas no chão de varandas.

Viver no calor lânguido, seco e desumano é amor e sofrimento em partes iguais. Daí o ser alentejano seja também partes unânimes de carinho, saber receber, saber estar, mas também de ruas vazias, de almas escondidas por trás de cortinados de renda.

O Alentejo no verão é tudo isto e muito mais. Mas se fecharem os olhos e uma onda de calor vos fizer chorar de transpiração e lá ao fundo ouvirem apenas as inabaláveis cigarras em cacofonia sem fim, protejam-se do sol e voltem mais à noitinha.

O Paulo é o autor do blog Há em nós qualquer coisa, onde escreve sobre o quotidiano no Alentejo. A fotografia que acompanha o artigo é do Filipe Soares.