Encontrar a nossa "luz" num templo budista

Texto e fotografias por Laura Silva

Nas últimas 2 semanas, testemunhei catorze vezes o nascer do sol num horizonte montanhoso, mergulhei na arte da caligrafia chinesa, provei comida vegetariana da mais deliciosa, conversei com monges e monjas budistas dos mais variados recantos do mundo e comi mais ananás do que em toda a minha vida. Estou em Kaohsiung, Taiwan, entregue a um programa de voluntariado internacional num mosteiro budista, Fo Guang Shan, e hoje trago-vos algumas das minhas reflexões e aprendizagens que marcaram esta jornada até ao presente na minha estadia neste local.

Inicialmente não tinha planeado visitar esta ilha. Vim completamente despreparada, sem qualquer expectativa e pouca, ou mínima, pesquisa feita. Fui então agradavelmente surpreendida ao aterrar em solo taiwanês com a simpatia e hospitalidade das pessoas, com a riqueza da gastronomia local e dos mercados noturnos, e pela exuberância da natureza. Foi muito fácil e intuitivo chegar ao mosteiro através do uso da eficiente rede de transportes públicos do centro da cidade.

Templo principal, Fo Guang Shan, Kaohsiung, Taiwan
Templo principal, Fo Guang Shan, Kaohsiung, Taiwan créditos: Laura Silva

Lembro-me de estranhar tudo, à data da chegada: a língua, os aromas, as pessoas, os locais e, sobretudo, os horários. Logo na minha primeira noite fui convidada a fazer uma sessão de meditação guiada, seguida de uma sequência de yoga de relaxamento e de um momento de partilha e conversa entre voluntários e monges em frente ao templo principal. Após saborear uma chávena de chá ao relento, decidimos recolher: eram 20h30. Divido o quarto com 3 outras voluntárias internacionais que, para minha surpresa, adormeceram quase imediatamente. «Que horários peculiares, ainda não são 21h00 e elas já dormem?!» – pensava eu. Na manhã seguinte, percebi porquê: acordei às 6h00 sozinha no quarto. Desorientada, apressei-me a sair e a procurar os outros voluntários. Desci as escadas e encontrei uma delas. Perguntei onde estava toda a gente. Ela respondeu que cada um molda o seu tempo, cada um tem os seus hábitos e que ela, por exemplo, acordava às 4h15 da manhã para ir correr, ver os cânticos matinais e tomar o pequeno-almoço formal. Impressionada com a produtividade dela, a partir desse dia, empenhei-me para também estabelecer uma rotina que me permitisse vivenciar o dia-a-dia no mosteiro da forma mais abrangente possível.

Ao mudar a minha rotina, passei a poder apreciar o cântico dos pássaros, o coaxar das rãs e o corar do céu quando o sol se levanta; alongar as minhas horas ativas enquanto há luz do dia, permitindo-me ter um melhor aproveitamento dos dias; e ganhar conforto num local onde fosse talvez expectavelmente difícil ganhá-lo.

Ao início tudo era, de facto, estranho. No entanto, ao final destas 2 semanas sinto-me em casa. Essa foi uma metamorfose que senti acontecer em mim ao longo do meu tempo em viagem: ao adaptar-me, este ritmo entranhou-se na minha forma de pensar e ser. E foi aí que notei que algo tinha mudado: já não me referia ao meu alojamento como “hostel” ou “dormitório”, mas sim como “casa”. Era a casa que eu regressava no final do dia. Não só este mosteiro, mas também num dormitório de 32 camas barulhento e sujo – era casa na mesma.

Estava a partilhar esta minha reflexão com uma das monjas do mosteiro mais fluentes em inglês e ela olhou para mim com uma cara quase repreensiva. Interrogou-me: "Como é que ainda não sabes que casa não é um sítio?" e seguiu-se com "Casa é todos os lugares onde vires a tua luz a brilhar". Sorri e acenei em concordância. Contudo, ela levanta o sobrolho e pergunta-me "Já sabes onde a tua luz brilha?". Inicialmente, fiquei um pouco confusa com a pergunta e não sabia como responder de imediato. Após uns breves segundos vazios, ela coloca outra questão: "Sabes o que é a tua luz? Percebes esse conceito?". E eu digo-lhe que sim, mas ela desmascara-me imediatamente a seguir: olhou-me fixamente e disse "Não, tu ainda não percebes. Volta amanhã para falarmos melhor".

Regressei no dia seguinte ao escritório dela, ansiosa para discutir esta questão que me tinha inquietado um pouco. Quando me vê, ela levanta-se, contorna a sua secretária e posiciona-se em frente a mim. Agarra-me o braço e coloca a minha mão contra o meu peito: “Sentes o teu coração a bater? Tum-tum... tum-tum.”.

De seguida, sugeriu que eu pensasse na minha família. “Ahhh, vês? – bate mais depressa! Tum-tum tum-tum tum-tum”. Explicou-me que, pela perspetiva budista, apegos e dependências como família, casamento, ou outros fatores externos e além do nosso próprio controlo, não são inerentemente considerados benéficos – que devemos ser capazes de contar apenas com nós mesmos e com o Dharma (ensinamentos de Buda) para definir o nosso quadro de sentimentos. Mas depois, partilha que, antes de se ter tornado monja e renunciado a todos os seus apegos, ela mesma era uma mulher comum, capaz de compreender o benefício que surge da conexão que nutrimos uns pelos outros, o amor fraterno. Mostrou-me então que consegue colocar-se na minha posição e pensar fora do paradigma que rege a vida do seguidor do budismo (compaixão – uma das grandes qualidades veneradas nesta religião) e comenta:  “Que bom que a tua família é a tua casa. Vês como a tua luz brilha neles?”.

Ela sorriu e congratulou-me. Pergunto-lhe porque me está a felicitar e ela explica que essa metamorfose que eu tinha sentido, o passar a chamar “casa” a um simples hostel não significava que a minha luz brilhava nesse local específico. Significava que eu, no meio do desconforto, tinha arranjado uma forma de me sentir confortável e tinha encontrado outra forma de fazer a minha luz brilhar, sem ser na superfície de um local físico. “Pensa lá onde é que está a tua luz no meio desse dormitório de 32 camas sujo e barulhento” propôs. Poucos segundos depois, apontou para mim. “Tu és a tua própria casa”. Sorrio e aceno, em tom de compreensão, provocando um riso da parte dela, que, entretanto, está a retornar para trás da sua secretária e a abrir uma das gavetas, da qual tira um saco de folhas de chá. Preparou 2 chávenas de chá e, 15 minutos mais tarde, lá estava eu a caminhar de regresso ao quarto enquanto processava toda esta conversa. Desde este dia que a ideia de “luz” tem estado muito presente no meu pensamento.

Pequeno-almoço no mosteiro
Paragem para pequeno-almoço com a monja e os outros voluntários internacionais ao longo de uma caminhada ao nascer do sol créditos: Laura Silva

Cada voluntário que passa neste local vive uma experiência única, justamente porque cada um tem a liberdade de moldar o seu tempo aqui conforme desejar. Encontramos somente aquilo que procuramos e, portanto, se viemos cá à procura de respostas, precisamos de formular as perguntas certas. Cada voluntário tem questões diferentes, estabelecerá conexões com pessoas diferentes, terá conversas diferentes e refletirá à sua maneira.

Eu tive a sorte de ter conhecido esta monja que compreendeu que eu não vim para cá para traçar um caminho espiritual, mas sim para desbravar o meu caminho nesta vida terrena da forma que me permita sentir-me mais conectada comigo mesma e que me tem então orientado da melhor maneira. No entanto, é importante notar que a experiência só oferece aquilo que nós mesmos depositamos nela. Não é magicamente transformadora, mas sim uma caixa de ferramentas desmontadas, cuja montagem cabe a cada um de nós, havendo a possibilidade de, com as mesmas peças, obter resultados diferentes e isso é incrível!

Laura Silva, com 18 anos, vai viajar durante 7 meses pela Ásia, onde promoverá a igualdade e o feminismo, assim como o apoio e integração a comunidades locais. Podem acompanhar o seu projeto, intitulado "Era uma vez", no SAPO Viagens ou no instagram.