Sou um homem do litoral, nascido e criado em Lisboa, residente em Peniche. Praias, para mim, sempre foram as do Atlântico; um conceito que implica água salgada, ondas, um oceano a perder de vista, vastos areais de grãos finos e aglomerações de chapéus-de-sol coloridos. Vá, em Peniche alguns corta-ventos também. Todas as praias que não tivessem estes elementos não eram as minhas. Até que, há pouco de mais de uma década, comecei a perceber que estava muito enganado.

Foi nessa altura que alguns amigos meus do interior começaram a desafiar-me para conhecer as praias escondidas nas serras. Ate então, uma praia na serra era para mim algo artificial, como uma estância de ski no Dubai. A minha ignorância merecia condescendência: o meu rio de referência era o Tejo em Lisboa, com uma praia de areias cinzentas no Cais das Colunas e a ameaça de erupções cutâneas a quem mergulhasse no seu leito. Mas depois os meus olhos viram o Zêzere, o Paiva e o Vouga e repararam que as suas águas eram tão límpidas que deixavam ver o fundo. Que o cenário envolvente era mais rico e diverso que o das praias oceânicas. E que mergulhar sem ondas e regressar a casa com a pele saborosamente insossa tinha as suas vantagens. Não tardei muito em render-me às virtudes fluviais.

Posto isto, quis conhecer o paraíso das praias de rio, isto é, a região do país com mais praias fluviais distinguidas com a bandeira azul. Esse lugar é a Pampilhosa da Serra, uma região da Beira-Serra a meio caminho entre Coimbra e Castelo Branco, bem no coração de Portugal. Tem três praias galardoadas na época balnear de 2021 (Janeiro de Baixo, Pessegueiro e Santa Luzia). O título é disputado: o concelho vizinho de Arganil também conta com três (Côja, Peneda Cascaleira-Secarias e Piódão). Por isso, tive de recorrer a um factor de desempate – em 2020, a Pampilhosa contava com quatro distinções, sendo que no presente ano a praia fluvial que se encontra no meio da vila capital do município perdeu a insígnia por haver obras por perto. A decisão estava tomada: malas aviadas e, na companhia da minha namorada e da minha filha, de quatro anos, rumei até ao Xisto Camping, em Janeiro de Baixo, onde tinha um bungalow baptizado de “Papoilas” à espera. Este alojamento tinha a mais-valia de estar bem junto a uma praia fluvial. Mas a Pampilhosa tem outras ofertas: o moderno Villa Pampilhosa (temporariamente encerrado) ou o alojamento rural Casas do Rio dão garantia de conforto para diferentes perfis de clientes.

Aldeia do Xisto de Janeiro de Baixo
Aldeia do Xisto de Janeiro de Baixo

A parte final do percurso, de Pedrógão Grande até à Pampilhosa, serviu de prefácio às maravilhas naturais da cordilheira, com as serras bafejadas pelo rubor do final de dia a assumirem uma beleza digna das telas de um pintor naturalista. Neste concelho encontram-se algumas das maiores serras do território continental, como a da Cebola e a da Rocha, acima dos 1000 metros de altitude. É um reino de prazeroso silêncio, interrompido apenas pelo chilrear dos pássaros e pelo assobio do vento, que me segredava o auspício de um fim-de-semana épico.

De manhã, pela televisão, vi os melhores atletas do mundo inaugurarem as competições dos Jogos de Tóquio. Mas, pela janela, era a aurora que se apresentava olímpica. O sol espreitava sobre um cerro disparando os seus raios, ainda tímidos, sobre o esplendoroso Zêzere. Ao seu lado, um comprido rasto de fumo de um avião a jacto, como uma serpentina de um dia festivo e solarengo.

A praia de Janeiro de Baixo ficava a meia dúzia de passos do bungalow. Eram 9h da manhã e já estava imerso com a minha filha no refrescante regaço do afluente do Tejo. Os cinco minutos em que me pus a flutuar sobre um colchão de ar amaciaram-me de tal maneira os músculos das costas que me senti massajado por cem especialistas tailandesas. O sossego era absoluto – havia apenas mais uma família na praia aquela hora, ela alemã, ele guatemalteco, dois filhos pequenos, a viajarem de carrinha pela Beira. As represas fazem com que o caudal naquela secção do rio seja estanque, uma autêntica piscina natural, com uma profundidade nunca superior a dois metros. Na margem, uma fina areia artificial, como a das praias de mar, sarapintada por pitorescos chapéus-de-sol. O vale está rodeado por colinas verdejantes, pejadas de pinheiros, já recuperadas dos graves incêndios de 2017.

Praia Fluvial de Janeiro de Baixo
Praia Fluvial de Janeiro de Baixo

O município tem apostado fortemente na promoção das suas praias fluviais desde que, há cerca de 20 anos, começou a apostar nas instalações de apoio ao seu uso. As praias da Pampilhosa são fruto do que a Natureza lhes dá. Os filhos da terra aprenderam lá a nadar e as suas águas sempre foram de excelência, magníficas, ao ponto de algumas delas poderem ser bebidas sem problema. O que o homem fez foi apenas adaptar as margens e as envolventes para o uso do público. Durante a pandemia, muitos foram os que rumaram ao coração de Portugal para as conhecerem e viverem a natureza no seu estado puro, com muito menos risco de contágios.

Ao constatar que os dedos dos pés da minha filha já estavam enrugados devido a tanto tempo dentro de água, percebi que era melhor fazer uma pausa. E nada melhor do que uma visita à Aldeia do Xisto de Janeiro de Baixo, sobranceira à praia, abençoada pelos penedos circundantes e pelo beijo do Zêzere. O material de construção predominante é o xisto, com a particularidade de muros e fachadas incluírem seixos rolados de tons claros recolhidos no leito do rio. Para além da Igreja Matriz, há ainda duas capelas e um antigo moinho escavado nas rochas.

Igreja da Matriz de Janeiro de Baixo
Igreja da Matriz de Janeiro de Baixo

O calor apertava e já sentia o chamamento da próxima praia fluvial – desta feita, a de Pessegueiro, do outro lado do concelho, a 35 minutos de distância. Apesar de ter menos de cinco mil habitantes permanentes, a Pampilhosa da Serra conta com uma das mais vastas áreas territoriais do país. Pelo caminho, uma paragem na vila de Pampilhosa para almoçar. Quando viajo pelo interior de Portugal com a minha namorada, alemã, vegetariana, este é sempre um momento alto: ela gosta de comer almoços ligeiros para não ficar empanturrada, e eu sei que a Beira-Serra não é sítio para amantes de granola. Já perdi a conta às situações em que lhe serviram frango por acharem que as galinhas não constam na categoria de “carnes”. Desta feita, pediu uma saladinha numa churrascaria. “Muito bem, uma saladinha, posso colocar mais coisinhas, como uns ovinhos, não posso?”. A Ilka ficou extasiada: pensou que lhe iam servir uma fresca salada de alface, pepino, cenoura, tomate e ovos cozidos, quiçá até uma mozzarella fatiada. Eu remeti-me ao silêncio. Até que chegou o prato: até tinha alface e tomate, genial, mas a acompanhar uma montanha de arroz, batatas fritas e dois ovos estrelados. “Quer que ponha mais coisinhas na salada?”, perguntou o empregado. Eu ri-me e deliciei-me com o meu entrecosto. Estava incrível!

Praia fluvial de Pessegueiro
Praia fluvial de Pessegueiro

A praia de Pessegueiro diferencia-se imediatamente da de Janeiro por ter relva em vez de areia. Está na base da aldeia com que partilha o nome e é um verdadeiro postal, atravessada por uma ponte singela, com vista para a torre da igreja imaculada e para o casario de xisto. É banhada por uma ribeira de águas limpas e cristalinas, que lhe valem, para além da bandeira azul, a classificação de ouro entregue pela Quercus, com base na qualidade da água. Não são muitas as praias que podem gabar-se do mesmo.

As instalações foram introduzidas com muito critério: há um bar com esplanada, piscina e parque infantil para as crianças e escadinhas para entrar e sair do banho. O canal está rodeado por hortênsias e árvores que garantem sombra. Ricardo Anjos, de 40 anos, e Luís Ramos, de 21, são os nadadores-salvadores que asseguram a segurança dos banhistas: “Em Agosto, os emigrantes regressam para passar as férias e a população da Pampilhosa multiplica-se por dez”, afirma Ricardo, que há uma década gira as praias serranas nesta função. “Vêm também turistas de todo o lado, portugueses, de Lisboa, do Porto ou de Coimbra, mas também estrangeiros de várias proveniências”. No ano passado, tiveram de hastear a bandeira vermelha muitas vezes: “Não por causa do perigo da ribeira, que não tem nenhum, mas por as praias ficarem no limite da capacidade limitada pelas medidas contra a pandemia”, diz Luís. Naquele dia, havia apenas umas três dezenas de banhistas e a bandeira estava verde. “Há muita gente ainda à espera de ser vacinada para vir mas em Agosto de certeza que vamos ter mais gente”. A praia do Pessegueiro tem capacidade para 140 banhistas. A sua água é ligeiramente mais fria do que a de Janeiro de Baixo.

Praia fluvial de Pessegueiro
Praia fluvial de Pessegueiro

Os avós de Luís e Ricardo contaram-lhes histórias do tempo em que a ribeira era usada para lavar a roupa e para o pasto dos animais e em que o velho lagar, entretanto recuperado, ocupava um lugar central na vida da comunidade. No concelho, enfrentam problemas de falta de emprego, todavia, acreditam que a aposta no turismo de natureza em prol da industrialização tem vindo a colher frutos. “O melhor que temos na Pampilhosa é a Natureza e tem sido realizada uma forte aposta no turismo rural. As pessoas não vêm apenas pelas praias, mas pela gastronomia, pelo silêncio, pelo ar puro, pelas Aldeias de Xisto e pela possibilidade de poderem desligar do stress da vida nas grandes cidades... até porque há aqui muitos sítios em que o telefone não tem rede. Em muitos casos, é um luxo”, diz Ricardo.

Ao abandonar Pessegueiro, deixamos para trás a casa em que Marcello Caetano, o último líder do Estado Novo, passou largas temporadas da sua infância. Da Pampilhosa, saíram para o litoral e para o estrangeiro várias ilustres figuras portuguesas; o mais famoso é o cantor Tony Carreira, de Armadouro, que iniciou em França uma carreira de sucesso, continuada em Portugal. Na letra de uma das suas canções mais icónicas, “Sonhos de Menino”, Tony homenageia o seu local de origem, pelo qual se passa no percurso entre Janeiro de Baixo e a Pampilhosa: “Lembro-me de uma aldeia, perdida na Beira, a terra que me viu nascer....”. O cantor é um frequentador ocasional das praias da Pampilhosa.

Paisagens da Beira
Paisagens da Beira

Aproximava-se a hora mágica. A silhueta curvilínea das montanhas precipita-se num desfiladeiro de cores e, ao volante, sentia que podia fazer curvas e contracurvas até ao infinito. Depois, numa descida, avista-se uma povoação camuflada no penedo, uma pérola numa ostra castanha: Fajão. Guilherme Filipe descreveu-a com as palavras mais perfeitas, em 1944, no “Guia de Portugal, Beira Litoral, Beira Alta, Beira Baixa”: “Situado em uma muito pitoresca concha da serra do mesmo nome, alcandorada sobre o rio Ceira, perto da sua nascente, entre altos e gigantescos penedos de xisto, cuja configuração oferece o aspecto impressionante duma cidade morta, troglodita, escavada de cavernas e castelos naturais (Penalva, Forno, Igreja dos Mouros e Porta da Falsidade). Quem quiser fazer alpinismo e puder andar por entre estes penedos gozará dum espectáculo verdadeiramente estranho, singularmente belo, e terá a ilusão não sabemos se dum convulsionado afloramento do Inferno de Dante, visto por Gustavo Doré, se de ossadas de gigantes de outro planeta que rolassem do céu, de escantilhão, e ali ficassem espantosamente estáticos, suspensos sobre o abismo de soutos e ervedais centenários. E quem no mais alto da serra subir à Rocha, a 1186 m. de alt., poderá então contemplar para oriente, sul e poente, o deslumbrante panorama de dilatados horizontes que vem lá do fundo da Beira Baixa e da Estremadura, num mar de serras pardas, amarelas, azúis e violetas, cuja ondulação lembra uma grande cavalgada que se levanta a carregar sobre a Estrela”.

Em Fajão, até a calçada é de xisto. A antiga vila é um viveiro cultural e muita da sua história pode ser conhecida no Museu Monsenhor Nunes Pereira, que no seu espólio inclui xilogravuras, aguarelas de Fajão e objectos históricos na aldeia, como o seu primeiro telefone público. Os fornos comunitários e a antiga escola primária transmitem memórias de tempos idos. No cimo, a piscina da aldeia tem uma vista magnífica sobre as escarpas circundantes. Fajão é, provavelmente, a mais formosa e impactante das 109 aldeias da Pampilhosa.

Fajão
Fajão

Todavia, a nossa visita a Fajão não teve como mote o património arquitectónico nem o apelo natural. Isso descobrimos depois. De todas as sugestões solicitadas antes da partida, uma repetia-se invariavelmente: “Têm de ir jantar ao Pascoal, em Fajão”. Tal como o Fiado, em Janeiro de Cima, ou o O Pinheiro, na Pampilhosa, o restaurante Pascoal é uma entidade na região. E rapidamente percebemos porquê; o queijo de ovelha com doce de gila que servem como aperitivo é de comer e chorar por mais, a carta está tão recheada de iguarias – javali com castanhas, chanfana, bacalhau assado – que se torna muito difícil escolher, e o serviço é gentil e eficiente. A minha namorada deixou-se de saladas e pediu um bacalhau assado no forno. Eu pedi maranho. E quando lhe expliquei o que era quase lhe tirei o apetite. Compreensivelmente, o maranho não é um prato agradável para vegetarianos: é o bucho da cabra, recheado com carne de cabra, presunto e arroz, e fortemente condimentado com hortelã, colorau e salsa, cozidos em água. Tem um sabor peculiar que a mim me agrada muito. E o Pascoal é o sítio ideal para o comer: tem a reputação de ter um dos melhores maranhos da Pampilhosa, município que, por sua vez, é sede da Real Confraria do Maranho.

Estamos, portanto, a falar da Liga dos Campeões dos buchos de cabra. O jantar foi rematado com duas babas de camelo caseiras e uma aguardente de mel que, de tão intensa, quase ajudou a finalizar a digestão em cinco minutos. Estava pronto para mais um mergulho mas, infelizmente, a noite já se apoderara dos céus.

Quando isso acontece, na Pampilhosa, as cortinas abrem-se para mais um maravilhoso espectáculo natural. Os céus nocturnos da região são tão escuros, tão puros, que permitem viajar pelo universo sem sair de cima de um penedo: vislumbram-se constelações e galáxias, planetas e satélites, estrelas-cadentes e cometas. O “Dark Sky” atrai cada vez mais visitantes ao concelho e tem sido fortemente promovido nas feiras de turismo. Na Barragem de Santa Luzia, a empresa EpicLand organiza viagens nocturnas de canoa para exploração do céu nocturno. Infelizmente, naquele fim de semana estava lua cheia e o forte clarão do satélite da terra impossibilitava o avistamento de maravilhas cósmicas. O luar, por sua vez, iluminava como uma lanterna as serras ermas.

Praia fluvial da Barragem de Santa Luzia
Praia fluvial da Barragem de Santa Luzia

Não pudemos ir de noite, mas fomos durante o dia. Na praia fluvial da Barragem de Santa Luzia, a que nos faltava, alugámos uma canoa e remámos, entre canções de piratas, até à ilhota que repousa no meio da albufeira. Uma aventura que muito agradou à mais pequena das tripulantes: após a travessia entreteu-se a explorar o ilhéu e todas as árvores e insectos que nele habitam. Para além dos passeios de canoa, a EpicLand e outras empresas como a Go Outdoor ou a Origem Safaris organizam descidas do rio Zêzere, paintball, lasertag, escalada, canyoning, caminhadas aquáticas e passeios pedestres e de bicicleta. Aqui está ainda localizado o Centro de BTT, de onde pode partir à descoberta dos mais de 122km de trilhos sinalizados, com quatro níveis de dificuldade.

Santa Luzia, com margem em areia, tem a água mais cálida das três praias fluviais, embora os locais alertem que à tarde fique muito exposta ao vento. Conta com uma piscina flutuante que faz as delícias dos mais novos. À saída, detenho-me no miradouro a contemplar a imperial parede de betão que une dois rochedos massivos, formando assim a albufeira que mistura as águas do Rio Vidual, Unhais e Ceira, o coração para onde fluem todos os vasos sanguíneos da cordilheira. Uma cruz branca cravada no alto do penedo confere à paisagem um carácter sagrado. A que se junta a chanfana que devorei, de seguida, no restaurante “As Beiras”, nas imediações da praia fluvial, e que me deixou sem fome quase 24 horas.

Praia fluvial da Barragem de Santa Luzia
Praia fluvial da Barragem de Santa Luzia

Após visitar a Pampilhosa, fiquei ainda mais convencido de que as praias fluviais são tão boas como as marítimas. Desde já, é inegável que têm mais diversidade: uma praia marítima tem necessariamente de estar encostada a um oceano, enquanto uma praia fluvial pode funcionar num rio, numa barragem ou num lago. O meu bom povo costuma dizer “não é a minha praia” quando não se sente à vontade em determinado lugar ou actividade. Neste centro de Portugal, não há praia que não seja a minha.

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