Para o seu "gap year", a Mariana propôs-se a atravessar a Europa de sul a norte e a partilhar, através da escrita e da ilustração, as suas impressões de cada etapa da sua viagem.

Arte como terapia em Calais (segunda parte)

Por Mariana Almeida

Equilibrismo das Associações

Calais é feita de uma malha divergente repleta de linhas muito finas, dependendo da adversidade que se vive diariamente, onde o tempo varia na sua própria escala e intensidade. Ganha uma dimensão abstrata, especialmente para quem vive em contacto com as associações que dão apoio à crise humanitária diariamente.

Eu gosto de pensar em nós, associações, como um conjunto de pessoas que erguem esta espécie de circo que apresenta um espetáculo de equilibrismo composto de pratos de porcelana que balançam em varas muito finas, cada prato de porcelana representa as milhares de pessoas que contam com o nosso apoio diário. Cada prato adicionado ao número, torna a dificuldade de manter o equilíbrio ainda maior. E nesta metáfora o público está representado pela polícia, que atentamente espera uma falha por parte das associações, por um momento de desequilíbrio onde um dos pratos se parta, e por vezes, essas pequenas falhas são o suficiente para acabar com o espetáculo. No entanto, por mais pratos que se partam, para quem está presente no campo e em contacto direto com as pessoas que se encontram em tais circunstâncias de vulnerabilidade, as certezas permanecem de que o espetáculo continuará indiscutivelmente, pois neste constante equilíbrio de pratos de porcelana em varas muito finas são milhares de vidas que se salvam.

A minha tribo

Quando, em 2021, participei no “Climes to Go” estava previsto apanharmos o barco em Calais e, nessa que foi uma curta passagem, tivemos a oportunidade de conhecer as diferentes associações que trabalham em conjunto para dar resposta às necessidades existentes no território.

Calais
O armazém onde operam as associações que auxiliam quem chega a Calais sem autorização para entrar no Reino Unido créditos: Mariana Almeida

Visitamos a “Warehouse”, que servia como base para muitas das associações, mas também como armazenamento de material, muitas das vezes proveniente de doações. Desta breve visita ficou-me guardada na memória uma estrutura composta por placas brancas que formavam uma espécie de uma caixa que se encontrava logo à entrada do armazém. Esta chamou-me à atenção, pela entrada estilo portão de garagem que projetava uma luz quente que atravessava os vapores de água, à distância embaciava-nos a vista, tornando enigmático tudo aquilo que se passava no seu interior. De lá saía música, que ecoava pelos corredores e fazia vibrar as prateleiras industriais que forravam as paredes do resto do armazém. Por alguma razão nunca me esqueci daquela pequena e secreta caixa, que representava naquele canto escuro e frio do armazém uma fagulha de felicidade.

Eu sabia que quando regressasse a Calais, o meu tempo enquanto voluntária teria de passar indiscutivelmente por essa mesma caixa que tanto me moveu. Dentro dela encontrava-se a RCK, (Refugee Community Kitchen), associação para a qual acabei por trabalhar durante esses dois meses. É uma das associações que fornece alimentação, no entanto, a única que proporciona refeições quentes a pessoas deslocadas no norte de França desde 2015, criando um espaço onde seja possível reunir e conectar através do poder da refeição.

Calais
Vista do "Warehouse" créditos: Mariana Almeida

Desde cedo senti que ao trabalhar para a cozinha da RCK era como trabalhar para uma comunidade que sempre me foi tão familiar. Por alguma razão senti que me encaixava naquele ambiente como se fizesse parte dele desde sempre. Ali senti-me completamente integrada não apenas pelo meu trabalho enquanto voluntária, mas também bastante valorizada como pessoa individual. Podia ser eu própria com as minhas qualidades e defeitos, com os meus ideais e as minhas crenças, que de qualquer das formas iria ser aceite e celebrada por ser genuinamente quem sou. Sabemos que somos inteiramente aceites quando nos sentimos protegidos, úteis e integrados. Acredito que foi ali mesmo, naquele tempo abstrato com aquele grupo de pessoas extraordinárias que eu encontrei aquilo que se pode considerar como a minha tribo.

Arte como terapia

Nos dias de folga havia sempre uma sensação de impotência, por não se fazer nada num lugar onde há tanto para fazer. Em dias como este, aprendíamos a lidar com o corpo dormente que palpitava à espera do próximo encargo e com a mente inquieta que tentava preencher o silêncio que existia no tempo de sossego.

Calais
Um dos pontos de distribuição de refeições créditos: Mariana Almeida

Assim, nos meus dias de folga, para dar alento ao corpo e à mente, tomei a decisão de visitar o “Secours Catholique”. Este era o único espaço multifuncional que abria as portas diariamente para receber e abrigar as pessoas deslocadas que não têm um lugar seguro para permanecer e conectar. Este espaço serve o propósito de um lugar onde se pode baixar a guarda e finalmente estabelecer algum contacto com a tão longínqua normalidade onde a sobrevivência deixa de ser a prioridade. Foi ali que encontrei o “Art Refugees”, o grupo que me proporcionou uma das experiências mais importantes enquanto voluntária.

Na minha última semana em Calais tive a oportunidade de compartilhar mais um dia com o “Art Refuges” naquele que era o projeto “The Community Table”. Nesses dias, trocava a azáfama de uma mesa que prepara refeições pela serenidade de uma mesa que desenvolvia o conceito de terapia através da arte. As mesas comunitárias permitem, através da expressão artística, abrir uma janela imaginária que explora diretamente a realidade de uma procura de respostas e soluções. Nestas sessões a arte é utilizada como uma ferramenta de exploração e busca. A mesa torna-se um espaço que oferece segurança para manter um diálogo, onde há a celebração de culturas e da diversidade de línguas, há a partilha de histórias e por vezes há a memória de casa. Há uma certa beleza quando a vulnerabilidade colide com fatos reais através da liberdade criativa.

Calais
"A minha tribo", escreve a Mariana créditos: Mariana Almeida
Calais
Registos da "Art Refuges" créditos: Mariana Almeida

Foi com eles que aprendi a reconhecer mais uma vez o potencial da arte, assim como a inexistência de limites na ajuda que se pode prestar a quem pede e espera pelo asilo.

Escorrega

Calais foi um lugar que me absorveu totalmente e desmedidamente. Gosto de descrever toda a experiência como uma espécie de escorrega de água, daqueles que têm uma inclinação desafiadora e que de tão escuros que são, torna-se impossível prever todas voltas e contra voltas que se dá. Quando entrei no tubo e senti que fui completamente sugada por toda a água que para lá escorregava, sabia que não havia volta a dar e por momentos fechei os olhos. Entre salpicos deixei-me deslizar até aquele que eventualmente seria o fim do tubo. E foi ao abrir de novo os olhos que realizei, ainda meio atordoada, que tinha acabado de viver uma daquelas experiências genuinamente recompensadoras, daquelas impossíveis de se replicar.

Calais
Último dia da Mariana na Refugee Community Kitchen créditos: Mariana Almeida

Na hora de mudar torna-se inevitável a sensação de melancolia à despedida, passar da inquietude de deixar para trás tudo aquilo que nos é familiar para o ofegante novo e desconhecido capítulo. Quem sabe um dia, o meu caminho se volte a cruzar com Calais, até lá, esta permanece como uma cápsula de um tempo na memória daquele que por ali passou, com um simples e único objetivo, ajudar o próximo.

Sobre a Mariana e o seu projeto

O Projeto Arda (Ao Ritmo Da Arte) chega-nos diretamente de Odemira desenhado por Mariana Almeida que se vai aventurar pela Europa durante oito meses depois de vencer a segunda edição do “Emunicipa-te”. Também pode ser acompanhado no Instagram. Previamente, escreveu sobre a sua estadia em Paris.